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Mal amanheceu e já tomo meu café na sacada. No terraço do hotel aqui em frente, um carcará se dedica a estranhos rituais. Puxa a fiação das parabólicas com o bico e, cuidadoso, organiza o emaranhado de cabos ao redor do para-raios. Por quê? Nem desconfio. Só sei que pegar, matar e comer não é mais a dele. Seus interesses deixaram de ser fáceis de versejar.

Se antes topava até cobra queimada, agora nem sabe o que faz. Ou sabe, e suas vontades é que ficaram inescrutáveis, assim como os desígnios do poder, da grana e dos corações de hoje. Tornou-se impossível cantá-lo e soar verossímil, criar metáforas políticas claras. O carcará atual é este mistério.

Para mim tudo bem, só estou tomando meu café e observando um pássaro – que, de repente, interrompe suas atividades e me lança aquele olhar lateral, típico dos grandes desconfiados. Decerto me considera um espião de baixa periculosidade, pois logo retoma o seu trabalho de maluco solitário. Parece construir um novo tipo de ninho, individual e eletrificado, para um novo tipo de futuro.

Só me resta imitá-lo. Vou aos fundos do apartamento e ligo o computador. Trabalho cedo, enquanto as meninas dormem. Abro as persianas do escritório e dou de cara com os urubus no terraço do prédio ao lado. Nos saudamos, quietos, e vamos em frente. Cada qual no seu ninho.

Um ninho, vocês sabem, é justamente isto: aperto e urgência conjugados

No deles, a novidade é que os filhotes chegaram antes da época. Não sei se o inverno quente, que fez os ipês florirem em agosto, não enganou também as aves. O resultado está aí: dois urubuzinhos já perdendo a penugem branca, às portas do seu voo inaugural. Costumo acompanhar o treinamento aéreo dos filhotes daqui, mas nunca os vi batendo as asas em definitivo, indo embora para sempre. É da sua natureza voltar.

Também ignoro se é sempre a mesma família a nidificar na minha vizinhança, ano após ano, mas a trato e recebo como a um grupo de amigos queridos. Dia desses, num documentário, vi que os urubus, quando o clima esfria, voam para o norte, até o sul dos Estados Unidos, parando somente para beliscar uns filhotes de tartaruga em praias mexicanas ou caribenhas. Não sei. Mas gosto de imaginá-los em Cuba, Cancún e Miami, morrendo de saudade da Boca Maldita, onde nasceram.

Gosto deles, não é segredo. Apenas temo pelos seus impulsos. São carniceiros, afinal, e agora têm cercado, com alguma insistência, o ninho que um casal de papagaios improvisou numa fresta de concreto, no alto do prédio da OAB. Se os papagaios gritam, às sete da manhã, é sinal de que está tudo bem. Se ficam quietos, é porque estão tensos. Aí vou à janela, checar o silêncio das aves, e descubro os urubus rondando o ninho alheio. Grito com eles, xô, saiam daí, e os bichos, em nome do nosso bom relacionamento, voam de volta ao seu reduto, emburrados feito crianças.

Aliás, esse casal de papagaios é o mesmo que apareceu aqui em casa, todo estropiado, após o vendaval de 27 de agosto. Como se vê, resistiram, se amaram e espremeram esse amor numa rachadura de parede. Um ninho, vocês sabem, é justamente isto: esse aperto e essa urgência conjugados.

Hoje, ainda bem, os papagaios amanheceram gritando feito as tirivas no Tijucas. E feito minhas filhas, que também acordam barulhentas, interrompendo meu expediente de mudo trabalhador matinal. Vou ao seu quarto e, no caminho, passo pela sacada, à procura do carcará. Já se foi.

Preparando o café das crianças, ligamos a tevê para ouvir as notícias. Não dá: a imagem e o som estão péssimos, não há mais âncoras, repórteres ou personagens, só fantasmas grunhindo. Alguém está mexendo na antena, penso. E, apesar de faltar nitidez a essa metáfora, sei que estas podem muito bem ser, sim, as notícias do futuro.

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