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Já faz tempo que visito Billy, o pelicano de Curitiba. Ele está sempre sozinho, junto a suas bromélias, coçando a cauda com o bico. Fora isso, mal se mexe, é quase um animal fixo. Semanas atrás, porém, notei uma ligeira mudança em sua disposição conservadora. Sim, Billy está se movendo. Aos poucos, vai se aproximando do melancólico maguari com quem divide o cercado no Passeio Público.

Não estou sugerindo nada, nem namoro, nem amizade. Só digo que aquelas duas grandes aves solitárias têm estado mais próximas uma da outra. Interessadas num mesmo pedaço de prisão. E, claro, sempre presas à gritante mudez que as irmana.

Não, nem sei se pelicanos e maguaris têm voz, se grasnam ou gazeiam. Sei é que nunca me disseram coisa alguma. E só fui me tocar disso porque li, mês passado, um ensaio de Primo Levi acerca de Giacomo Leopardi e seu Elogio dos pássaros. Leopardi dizia que as aves, por desconhecerem o tédio, eram as criaturas mais felizes da Terra. E sugeria que o canto dos pássaros seria mais gentil onde mais gentis fossem os modos da humanidade.

Leopardi dizia que as aves, por desconhecerem o tédio, eram as criaturas mais felizes da Terra

Pobre Billy, pobre maguari, cujo nome ignoro! Que será de suas vozes, se Curitiba, para vocês, é exatamente como a descreveu Dalton Trevisan? Província, cárcere, lar.

Enquanto não me respondem, mudo de bicho, mas não de assunto. Dia desses, pela primeira vez, ouvi as seriemas do Passeio cantando, e já posso dizer que concordo com Tião Carreiro e Pardinho: não existe canto mais triste. Elas ganiam, jogando a cabeça para trás, como se gargarejassem, regurgitando uma dor indigerível.

Entendê-las é fácil. Velocistas de elite, são obrigadas a acompanhar o treino das dezenas de humanos que correm diariamente diante de seu viveiro. Pior: vários atletas ainda cultivam o costume de alongar-se nas barras de sua gaiola, atitude que as seriemas decerto consideram provocativa ou, no mínimo, de mau gosto.

Não me espanta que gemam e chorem. Já as vi, contudo, em bons momentos de silêncio. Num sábado, uma adolescente parou para admirá-las. Era linda, loura e séria, muito alta e magra. Tinha as pernas longuíssimas e, no andar, a elegância calculada das passarelas, além de feições educadas para a indiferença, o que a reaproximava de certa natureza selvagem. Esquecida da pose, reencontrou-se ao descobrir as seriemas. E foi como se houvesse rolado, entre elas, um lance profundo de identificação.

As aves se serviam de um punhado de ratinhos brancos. Pinçavam os roedores pela barriga e os chacoalhavam com fúria, até que se rasgassem. Suas vísceras, então, floresciam, numa violenta explosão de tons vermelhos, suplicando por um leitor divinatório. Como pode haver, pensei, tanta cor dentro de um ratinho branco? Pois durante o banquete, não só as seriemas pareciam seres felizes: a própria moça que as admirava, pasma consigo mesma, sorria. Que futuro teria lido no sangue?

Melhor voltar ao pelicano e ao maguari. Influenciado por Leopardi, romantizei a relação entre eles. Na verdade, Billy e seu parceiro ciconídeo não estão interessados um no outro, e sim no acanhado raio de sol que, de manhã, aquece o mesmo canto de seu cercado. As grades os forçam ao convívio, mas é aquela nesguinha de luz que os aproxima.

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