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O calor atormenta o neném, que enlouquece o papai. Não podendo trabalhar, pego minha caçula e vamos à rua. É dia útil, três da tarde, e desço a Ébano pela margem direita, onde há sombra. Levo a menina nos braços, carrinho pra quê? Carregá-la no colo é passear por uma cidade paralela, irreal, onde um curitibano nos sorri a cada dois passos.

A ideia é pegar a Cândido Lopes, mas um pressentimento me detém na esquina. Da calçada de lá, vem uma moça com uma sacola das Americanas. Ela corre, desesperada, trombando com tudo à sua volta. Terá pressa ou medo? Vocês escolhem. Seja como for, a moça invade o asfalto da Cândido sem olhar para os lados.

Os carros buzinam e não brecam, também têm horários a cumprir. A mulher se assusta e congela entre as faixas, confusa, as motos tirando finas de seu corpo magro. Quero gritar cuidado, mas me calo ao ler a estampa em sua camiseta: “Viva com esperança”. Sinto que a moça vai morrer, aqui e agora, diante de mim e de minha filha, e nada faço, apenas assisto.

Ainda bem que ela reage. De repente desperta e salta sobre nós, no meio-fio. Pulo para trás e salvo o neném, mas a moça leva azar: é colhida na calçada por uma bicicleta, que vem voando na direção oposta à dos carros. O ciclista freia e evita um acidente pior. Mesmo assim, a vítima, tocada por um pneu, derruba a sacola e se irrita. Algumas peças de roupa se espalham, e aquilo a transtorna.

Comprar pães à noite, vocês sabem, é apostar no amanhã

A moça mede o ciclista, seu capacete e seu colante, e passa a xingá-lo: imbecil, idiota, babaca. Depois chora, diz que a vida não vale um cachorro-quente, e que ela está ferrada, maldita a cama em que foi concebida, o pai e a mãe, dois cretinos que nunca morrem.

O ciclista não revida. Sabe que errou, e repetidamente pede perdão e calma. Mas, ao ver a moça chorando, busca também consolá-la. Não seja tão negativa, diz ele, o futuro a Deus pertence. Por fim, apelando à estampa na camiseta da outra, recita, jovial: “Viva com esperança, ora”.

Palavras sábias, alguém sugere, ao ver a moça engolir o choro. Os olhos dela, porém, pegam fogo. A boca entorta. Furiosa, quer saber se o sujeito está de palhaçada. Ao ciclista só resta negar, retomar a estratégia inicial, pedir calma e perdão. Recurso inútil, pois a moça não o ouve mais: “Viva com esperança? Que besteira é essa de esperança, cara?”

O homem explica, veja bem, está na sua camiseta, e aponta a joia motivacional no peito da mulher. Ela desvia o olhar para o próprio corpo e, atônita, lê aquela declaração como se nunca a tivesse visto. Depois, cata suas roupas, dispara e some Ébano acima.

Olho para o neném, que sorri para o papai. Minha filha não está impressionada, mas se divertiu. Venceu o calorão, recuperou o bom humor. Ela adora participar do mundo, terá puxado o velho?

À noite, saio comprar pães para o café da manhã seguinte. Comprar pães à noite, vocês sabem, é apostar no amanhã. Assim, vou à Panificadora Fênix pensando em todos os dias que já morreram e ressurgiram das próprias cinzas, entre os meus lençóis. No caminho, cruzo a Pracinha do Amor, onde, para minha surpresa, reencontro a moça da camiseta positiva.

Ela ressona entre os canteiros floridos. A primavera chegou. A sacola das Americanas voeja entre nós, vazia, presa aos caprichos de um redemoinho. Passo pela moça com cuidado, mas ela acorda e me chama, pondo uma bagana nos lábios: “Tio, tem um dragão aí?”

Digo que parei de fumar e mecanicamente me desculpo. Ela se espanta, pra que se desculpar? Diz que fiz bem, sou esperto, e jura que também vai parar, se Deus quiser, só que amanhã, parceiro, só amanhã. Amanhã é o dia de parar. Hoje estamos sem pressa.

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