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“Não há nada mais bonito que a amizade de uma criança por um adulto”, me disse a mulher, anos atrás. A amizade entre ela e uma menina tinha começado algumas décadas antes. Foi se transformando e dando novos frutos. Era uma história bonita, eu podia ver, mas que “não há nada mais bonito que a amizade de uma criança por um adulto”, essa era a parte mais interessante da nossa conversa.

Adultos e crianças vivem em mundos distintos. O das crianças é limitado espacialmente pela família, que diz onde ela deve estar, quanto tempo pode ficar e o que pode e o que não pode fazer. Mas o pensamento e a curiosidade da criança vagueiam, selvagens, e mesmo um menino ou uma menina tímida se expressa mais livremente do que um adulto porque não está treinado para se vigiar o tempo todo.

Mesmo quando são interesseiras, crianças não são maliciosas, e isso nos desarma (...) Não há subterfúgio no mundo infantil.

Quando uma criança oferece sua amizade a um adulto, é como se lhe franqueasse a entrada nesse mundo do qual ele já foi expulso. A criança não sabe disso, mas intui; o adulto sabe, ainda que não se dê conta. Então, ao mostrar interesse pelo adulto, a criança destranca a porta que dá acesso àquele Paraíso Perdido e, com isso, faz do novo amigo um sortudo, um privilegiado. O mais empedernido entre nós, “gente grande”, se sensibiliza ao se dar conta de que foi notado por uma criança.

Crianças distinguem claramente que adultos são “velhos”. Para um menino de 6 anos, até um adolescente de 16 é um coroa que se aproxima da morte. Por muitos anos, eles vão manter essa convicção de que todos aqueles cujos corpos pararam de crescer são decrépitos. Só adotamos uma postura mais modesta quando nós mesmos nos damos conta de nossa inevitável decrepitude. Não é falta de respeito; é convicção inocente. Aos 18 anos, James Joyce escreveu uma carta carinhosa para Ibsen, de quem era admirador, e sem a menor cerimônia disse ao seu ídolo, então com 73 anos: “Seu trabalho na terra está chegando ao fim e você está perto do silêncio. Está ficando escuro para você”. Ibsen poderia ter se perguntado: “Quem esse insolente pensa que é para me dizer que estou acabado?” Mas o veterano estava encantado por descobrir um rapazola que o admirava e queria ser seu amigo. Como uma dobra no tempo e no espaço, aquela amizade permitia ao septuagenário viajar, libertar-se da reclusão no universo limitado em que nossa existência diária e nossa biologia nos confinam.

Mesmo quando são interesseiras, crianças não são maliciosas, e isso nos desarma. Elas podem estar de olho no doce que temos nas mãos, no nosso cachorro que querem conhecer, no nosso gato que querem acariciar, e não na nossa companhia. Mas demonstram esses interesses de forma tão descarada que nos rendemos. Não há subterfúgio no mundo infantil. Todos os acobertamentos e firulas que inventamos para nos aproximar e afastar das pessoas ainda não existem no mundo dos pequenos. Com eles, damos um passo para trás e adoramos isso.

Crianças gostam sinceramente de seus amigos adultos – quando elas têm um, o que não é muito comum. Cultivam certo respeito por eles, uma admiração alegre por coisas que eles conseguem fazer. O garotinho de 4 anos que me cumprimenta e que me segue com os olhos quando saio de casa notou minha existência em meio aos muitos vizinhos que o cercam porque eu tenho gatos. Era nos gatos que ele estava interessado quando se aproximava da minha casa com ar surpreso (talvez nunca tivesse visto felinos tão de perto). Mas seus acenos de mãozinha gorda me alegram as manhãs. O adolescente de 17 anos que brinca com o garotinho de 7 na festa da família é observado com olhinhos de admiração enquanto movimenta os dedos com agilidade no videogame e se sente especial por ter cativado um amigo de outra geração.

As gerações nos dividem, não há dúvida disso. É preciso disposição e bom humor para conviver com quem acumula muito mais ou muito menos experiências que nós, com quem compartilha outras referências de vida. As crianças pequenas sublimam essas diferenças porque não estão agarradas a elas para proteger sua identidade. São seres especiais, o ser humano em seu estado mais interessante, mais encantador. Por isso, quando esses seres especiais se dignam a nos olhar com interesse, nos tornamos, nós também, especiais.

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