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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Em dezembro de 2000, registrei neste texto uma história que minha mãe havia me contado. O título era “Vó Alta”, e o texto foi um presente de Natal que dei para cada um dos meus irmãos.

“Não sei como a primeira galinha chegou ao quintal da minha avó. Mas, por falta de uma informação, não vou deixar de contar a história toda.

De uma galinha, minha avó passou a ser dona de uma ninhada de pintinhos. A criação continuou crescendo, sem que ninguém prestasse atenção nela. Comia-se ovos, matava-se frangos. Havia, porém, algum controle para que a criação continuasse crescendo.

A minha avó é que fazia esse controle. Fico imaginando que contava as galinhas toda semana. Um dia, considerou que era hora de vender o fruto do seu trabalho. Achou um comprador, fez um preço, negociou e pôs o dinheiro no bolso.

Eram 200 contos de réis. O que se comprava com 200 contos de réis pelos idos de 1940 eu não sei. Sei o que minha avó fez com o dinheiro. Foi à cidade, São Pedro da União, e comprou cortes de tecido para fazer roupas para todos os sete filhos. Minha mãe foi privilegiada com dois cortes. Meu avô iria fazer uma viagem para uma cidade um pouco maior, Guaranésia, e pretendia levá-la. Por isso minha mãe precisava de roupas novas. A roupa que usava na roça não combinava com a cidade. Ganhou sapatos novos também. No sítio não se usava calçados no dia a dia.

Dei-me conta de que estava avaliando uma vida pela situação. A beleza de cada minuto da vida da minha mãe tem um valor inestimável

O dono da loja ficou surpreso e contente com a boa venda que fez para minha avó. Para agradecer com uma gentileza, deu a ela um pacote de meio quilo de balas.

Imagino que aquele foi um dia especial para minha avó. Dona de casa e mãe de sete filhos, mulher de sitiante, ela devia trabalhar muito sem nunca pôr a mão em dinheiro. Com as galinhas, ganhou algum sem chamar a atenção de ninguém, como precisava ser. Com o que ganhou fez o que para ela devia ser o mais importante, cuidou dos filhos.

Imagino minha avó voltando pra casa orgulhosa e excitada pelas compras, planejando as costuras que iria fazer. Filhos e marido devem ter sido pegos de surpresa pela súbita autonomia financeira da minha avó, pela demonstração de carinho, pelo meio quilo de balas. Os cortes de tecido, que suponho simples, já que vendas do interior não oferecem mercadorias sofisticadas, eram para eles, para fazê-los bonitos e respeitáveis na cidade grande. Na vida que levavam, roupa nova era um luxo. Foi a forma de a minha avó dar um mimo para cada filho e mostrar seu amor.”

Meses depois de registrar por escrito esta lembrança da infância de minha mãe, ela recebeu o diagnóstico de Alzheimer. Por algum tempo a perda das memórias dela me perturbava em relação ao próprio sentido das nossas vidas. O esquecimento parecia tirar todo o valor das experiências vividas.

Esse questionamento desapareceu da minha cabeça. Dei-me conta de que estava avaliando uma vida pela situação atual. A beleza de cada minuto da vida da minha mãe tem um valor inestimável. Se ninguém se recorda daquele momento, ainda assim ele foi importante quando aconteceu. O momento é gigante e, se esqueci disso, foi porque sou obcecada pelo presente e pela ideia de eternidade – como quase todo mundo, eu suponho.

Sessenta anos depois de ver a mãe dela voltar para casa com os cortes de tecido, naquele sítio lá no interior de Minas, que eles trocariam por um pedaço de terra nas áreas novas do Norte do Paraná, minha mãe me contou a história. E ela estava linda enquanto contava.

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