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É penoso tecer comentários sobre a destruição que o Estado Islâmico (EI) vem promovendo nos sítios arqueológicos da Síria e do Iraque. A justificativa dos perpetradores é de que as peças destruídas ferem uma regra corânica relativa à proibição de certas representações figurativas.

A verdade, para além da alegação teológica distorcida, reside na perspectiva econômica de financiamento do próprio EI, que, ao divulgar os filmes da destruição, também promove uma chantagem do tipo “olha o que podemos fazer se vocês não pagarem por essas peças”. A atitude, por sua vez, legitima um mercado negro que vem transferindo milhares de peças para coleções privadas na Europa e nos Estados Unidos. Uma sinuca de bico.

Resta saber como impedir que a memória da civilização seja apagada. Na medida em que a perspectiva de que grupos humanos parem de destruir o passado é nenhuma, é preciso pensar em outras formas de preservação. A primeira que vem à mente, em especial no caso em questão, é a transferência rápida dos acervos em risco para países capazes de protegê-los.

A reprodução fiel de um Goya, em outros termos, não é um Goya; é, todavia, muito melhor do que Goya nenhum

A ideia, porém, esbarra no discurso historicamente justificável de que a medida nada mais é do que uma forma sofisticada de pilhagem. Dado fático: peças que deixam seus países de origem, de fato, raramente retornam a aos sítios iniciais, por mais que o contexto civilizatório evolua.

Outra possibilidade residiria no uso radical das tecnologias recentes de registro e reprodução, inclusive por impressoras 3D, para a digitalização, guarda e replicação dos acervos. Parte-se, aí, da hipótese de que o valor imaterial de um bem material pode ser dele inteiramente extraído, chegando-se, no extremo, a prescindir da própria materialidade. Por esse critério, a digitalização minuciosa de um touro alado assírio, por exemplo, seria uma garantia de sua perenidade, mesmo que o original desaparecesse sob a marreta do obscurantismo.

A beleza do processo residiria na possibilidade de democratizar qualquer acervo e de permitir, por exemplo, que o tal touro alado fosse fielmente replicado em Curitiba, Amsterdã ou na própria Nimrud que, no início de tudo, abrigava a peça original. A tristeza, por sua vez, residiria na inexistência, nas peças replicadas, da centelha da originalidade. A reprodução fiel de um Goya, em outros termos, não é um Goya; é, todavia, muito melhor do que Goya nenhum.

Em síntese: situações como as vistas nas últimas semanas em Mossul, Nimrud e Dur Sharrukin, palcos recentes da sanha jihadista do EI, não devem ser encaradas apenas como crime e tragédia. Elas também devem nos levar a pensar em outras formas de preservar e universalizar de fato os bens civilizatórios. Os recursos tecnológicos estão aí – falta só perceber a urgência do processo e dar a devida atenção à questão.

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