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| Foto: Cameron Barber/Free Images

Talentoso, mesmo, é o Afonso, colega de faculdade que, por uma dessas coincidências estranhas da vida, trabalha comigo há mais de 20 anos nas lides jornalísticas. Afonso, em síntese, é o mais fantástico player de air trumpet que eu conheço. Um gênio à moda dos “Homens Notáveis” de Gurdjieff – uma figuraça.

E, se você não sabe o que é air trumpet, não se preocupe. A curiosa expressão serve para identificar todo solo de trompete feito assim, na moral e no talento, com os pulmões, cordas vocais, bochechas, lábios e mãos (que, postas em concha sobre a boca, simulam o abafador) –, só que sem um trompete de verdade.

Se eu fosse espírita, consideraria a hipótese mediúnica

Uma simulação que, em alguns casos (como no do Afonso), alcança a perfeição. Outro dia, por exemplo, assim do nada, em pleno horário de fechamento do jornal, ele sacou as primeiras notas de I Wish You Love, de Chet Baker. Do começo triste e duvidoso à apoteose risonha e algarves, o danado acertou todas as notas no tempo certo e ainda fez a firulinha que aparece em uma versão rara da música, coisa de conhecedor profundo. Se eu fosse espírita, consideraria a hipótese mediúnica; como sou apenas um admirador com uma pontinha de despeito por meu próprio talento limitado, porém, fiquei só escutando, secretamente esperando alguma falha que o devolvesse à mediocridade. E ela não apareceu.

O pessoal, evidentemente, vibra com a brincadeira e, nas festas da empresa, pede sempre que ele dê uma palhinha. E ele concede a graça, com apresentações magistrais de peças como Blade Runner Blues, Esquinas (na versão de Paulinho Trompete) e todo o repertório do Dizzy Gillespie. E, nos dias de jogo da seleção, o hino nacional brasileiro.

O mais interessante é que o Afonso não dá muita importância ao próprio talento, que considera tão imaterial quanto o próprio ar de que é feito o trompete invisível. “Uma bobagem!”, desculpa-se sorrindo entre uma música e outra. Não sinto um tom de mentira ou de falsa modéstia aí, o que deixa a coisa ainda mais misteriosa, já que, para alcançar aquela qualidade, só mesmo com muitas horas de ensaio.

E eu, que também me amarro em tocar trompete invisível, acabo relegado, por receio das comparações e dos olhares condescendentes, a ensaios e apresentações solitárias no chuveiro. Mesmo com todo empenho, porém, jamais chegarei à vigésima nota de In the Mood, do Glenn Miller, que Afonso toca sorrindo com e sem abafador. E como isso dói!

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