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Há muitíssimo tempo atrás, as sociedades empresariais eram resultado de laços pessoais de intimidade. Conhecimento recíproco, respeito ou amizade, confiança e economia de custos eram as palavras que uniam sujeitos em torno de um projeto empresarial comum. Hoje, tais ideias são escassas no mundo empresarial. As relações societárias tornaram-se bem mais complexas – sobretudo nas sociedades anônimas (regidas pela Lei 6.404/1976). Como o nome já diz, tais empreendimentos unem pessoas que não precisam se conhecer, pois são anônimas entre si, mas que associam os seus recursos em vista de certo objetivo comum (o lucro).

Na medida em que as sociedades anônimas não se estruturam em vista de laços subjetivos de confiança recíproca, o legislador houve por bem desenvolver técnicas compensatórias para inibir a natural ganância do ser humano. Afinal de contas, a maioria dos acionistas não sabe quem são os seus parceiros, nem tampouco quem vem a ser o diretor presidente e os membros do conselho. Quem administra a empresa é um profissional, contratado a fim de gerar riqueza para os sócios (e não para si mesmo). Se for feliz em seus intentos, receberá, além dos salários, polpudos bônus: daí o perigo de haver soluções heterodoxas de gestão, que coloquem em risco a sociedade e seus acionistas. Isso precisa ser regulado: o sujeito precisa saber que será punido se praticar ilícitos e a sociedade necessita de instrumentos que coloquem às claras todos os atos dos administradores.

Dentre tais regras de comportamento empresarial, uma das mais importantes é a de governança corporativa, que significa o conjunto de técnicas de governo das sociedades, sobretudo as anônimas, que busca garantir o cumprimento do estatuto social (em benefício da sociedade e, reflexamente, de seus sócios). São as “melhores práticas corporativas”, que unem a ética dos negócios à fidelidade de seus executores. Pretende-se organizar a execução e conferir transparência às atividades societárias, a fim de permitir a otimização do relacionamento entre sócios, administradores, diretores e órgãos de controle (interno e externo). Duas palavras intraduzíveis podem ser conjugadas para explicar a governança corporativa: accountability e compliance.

Muito embora nem tão antigos no Direito Privado, esses conceitos têm recentemente migrado para o setor público da economia, sobremodo nas empresas estatais.

Afinal de contas, nem sempre o Estado desenvolveu atividades econômicas. Ele apenas prestava determinados serviços de interesse público (a maioria dos quais sem escopo lucrativo). Quando muito, o centro de gravidade das atividades econômicas do Estado era também o interesse público (conceito tão sedutor quanto perigoso). Mas fato é que esse tempo também já passou.

Atualmente, as empresas estatais brasileiras ocupam alguns dos setores mais importantes da economia nacional – basta que pensemos em petróleo, bancos, correios, portos, energia elétrica, aviação civil, bem como água e saneamento. Para se ter uma ideia do número, só o governo federal contabiliza mais de 100 estatais.

O que torna a experiência empresarial pública bastante peculiar. Aqui, o acionista controlador é a pessoa política (União, Distrito Federal, Estado-Membro ou Município) – leia-se o cidadão brasileiro. Somos todos proprietários dessas sociedades empresariais, eis que compomos aquela massa que constitui o acionista controlador e elege os seus representantes. Porém, quem escolhe os dirigentes das estatais é o governo de plantão – que pode se orientar por ideais republicanos, mas igualmente pode fazer escolhas meramente políticas. Logo, podem ser nomeados profissionais de alta qualificação e idoneidade, ou pessoas sem qualquer atributo técnico (estes são “os insubstituíveis”: como ninguém sabe o que fazem, é impossível os substituir). É o mundo maravilhoso da cortesia com o chapéu alheio: a título de agradar a um aliado, o governante o presenteia com cargos numa empresa estatal.

Como se pode imaginar, o risco de desvios é tremendo. Muito maior do que numa sociedade anônima do mercado privado, em que os acionistas escolhem os melhores profissionais do mercado e os monitoram diuturnamente. Nas empresas estatais, não existe qualquer vínculo de respeito e obediência ao acionista (o povo). O anonimato impera. E nem sempre existe a estabilidade e segurança no funcionamento das estatais, que muitas vezes se prestam a implementar políticas públicas (pouco importa os prejuízos aos acionistas). Isso sem se falar na corrupção...

Daí a importância de projetos legislativos como o da Lei de Responsabilidade das Estatais. Isso além do PL 420/2014 (do Senador José Sarney) e do PL 167/2015 (do Senador Roberto Requião). Muito embora haja divergências quanto à iniciativa de tais projetos de lei (se seriam de competência privativa do Chefe do Executivo, pois tratam da organização da Administração Pública), fato é que está na hora de se debater a sério este assunto. As empresas estatais necessitam de estatuto geral, de uma lei-quadro que discipline os critérios de nomeação, a transparência do seu funcionamento, o dever de prestação de contas à sociedade e a mais absoluta responsabilização de seus dirigentes por atos indevidos.

Um só exemplo da farsa – ou tragédia – que podem ser as estatais brasileiras demonstra a importância desses projetos legislativos.

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A cansativa repetição da História

Dia desses, deparei-me com este texto: “O governo por isso mesmo tratou de pôr fim imediatamente aos gigantescos déficits das indústrias federais que administravam ferrovias, navegação e exploração de petróleo. Em cada caso era fatal o aumento dos preços dos serviços, medida que elevava diretamente o custo de vida a curto prazo.” Não, não foi uma notícia de jornal relativa aos tempos atuais. Não tratava do problema da Valec, nem da decisão do TCU sobre os portos – e nem, muito menos, de todos os escândalos hoje vinculados à Petrobras. Nada disso.

O texto é apenas uma citação do clássico Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1980), de Thomas Skidmore, e se referia ao início do governo Castelo Branco (aqui e aqui, você pode ver um pouco dos vídeos e ler a transcrição de duas entrevistas de Skidmore, em 1988 e 1997, no Roda Viva).

Assim, de duas, uma: ou mudamos o estatuto das empresas estatais brasileiras ou vamos continuar a assistir esse filme, que não vale a pena ver de novo.

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Outro projeto de lei

Como hoje é o dia de falar sobre projetos de lei, não poderia deixar de mencionar um bem recente, de autoria dos Professores Carlos Ari Sundfeld (Escola de Direito da FGV/SP) e Floriano de Azevedo Marques Neto (Faculdade de Direito da USP). Trata-se de tentativa de alteração da já antiga Lei de Introdução ao Código Civil, hoje conhecida por Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB.

O projeto tenta adaptar a quase centenária Lei de Introdução, oriunda do mundo das grandes codificações e poucas fontes normativas, a parte dos desafios dos dias atuais. Vale a leitura e o debate do projeto, que pode ser visto aqui. Segurança jurídica e eficiência são as palavras-chave.

*Egon Bockmann Moreira: Advogado. Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Professor visitante da Faculdade de Direito de Lisboa (2011) e do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação - CEDIPRE, da Faculdade de Direito de Coimbra (2012). Conferencista nas Universidades de Nankai e de JiLin, ambas na China (2012). Palestrante nos cursos de MBA, LLM e Educação Continuada na FGV/RJ. Escreve às segundas-feiras, quinzenalmente, para o Justiça & Direito.

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