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Estátua de William Shakespeare em sua cidade natal, Stratford-upon-Avon.
Estátua de William Shakespeare em sua cidade natal, Stratford-upon-Avon.| Foto: Mikes Photography/Pixabay

Comecei recentemente a escrever em inglês. Em outros tempos da minha porca vida eu já havia trabalhado traduzindo para o inglês o que outros haviam escrito. Não era ruim nisso; criei dois filhos assim. Mas escrever diretamente em inglês é outra coisa. O fato de eu ler muito mais em inglês que em qualquer outra língua – pois mal que bem é esta hoje a língua franca internacional, em que japoneses conversam com italianos e em que saem quase todos os livros interessantes – pode me dar alguma percepção de como deve ser o texto para soar fluido e idiomático, mas mesmo assim a diferença é tamanha que acaba forçosamente afetando até mesmo o modo como a gente pensa.

Só para começar, enquanto nosso bom português é um latim mal falado e um tanto simplificado, herança surrada de nobreza falida, o inglês é o oposto. É uma língua vira-lata, mestiça até dizer chega, uma mistura tremenda de pedaços de outras línguas, alguns mantidos inteiros, outros picadinhos, outros por vezes distorcidos até além do limite. É uma língua feita para ser língua franca de comerciantes, simplíssima em sua gramática, mas por isso mesmo cheia de armadilhas vocabulares. Uma estrutura sintática mais rica e mais flexível, como a nossa, pode poupar palavras para criar nuances; tal não é o caso do inglês. Em português podemos ter um homem grande e um grande homem, mas em inglês o que é aqui dito em cada caso pela mesma palavra “grande” demanda palavras diferentes por conta da rigidez gramatical que obriga o adjetivo a vir antes do substantivo: o homem grande se torna big man e o grande homem, great man.

No entanto, a maior diferença entre o nosso português, que sabe a classicismos arcaicos, a ruínas ensolaradas e floridas de antigos palácios de mármore, e o inglês curto e grosso dos comerciantes é uma característica da língua inglesa que chega a ser incompreensível para o estudante brasileiro, tão diferente ela é do nosso modo de pensar. O inglês, ao contrário do português, é uma língua em movimento. Suas sentenças são como flechas, sempre atiradas em alguma direção. Já o português privilegia uma descrição estática das coisas, pressupondo uma certa imutabilidade no que se está a descrever. Daí termos aqui, para pegar o pior efeito de tal diferença, um José de Alencar, com páginas e mais páginas de descrições dos ambientes, e por lá eles produzirem tremenda quantidade de histórias de ação.

O inglês, ao contrário do português, é uma língua em movimento. Suas sentenças são como flechas, sempre atiradas em alguma direção. Já o português privilegia uma descrição estática das coisas

Há uma diferença imensa entre ler uma dessas histórias no original e em tradução para o português. Em português parece que o freio de mão foi puxado; as cenas se arrastam, os personagens parecem letárgicos, e o que no original era uma tremenda correria vira uma sequência de cenas mornas, quase chatas. Já em inglês as mesmíssimas cenas são vibrantes e cheias de movimento. O segredo reside na quase-exigência da língua inglesa de que o verbo seja acompanhado de uma direção. Enquanto o luso anda pela rua, o anglo forçosamente anda rua acima ou rua abaixo. Do mesmo modo, podemos jogar alguém pela janela ou, mais literariamente, defenestrá-lo. Já o anglo o jogará janela afora. Não se anota uma coisa, mas se a escreve abaixo; não se anota uma transgressão para levá-la aos superiores, mas se a escreve acima. E por aí vai. Cada verbo é como uma flecha, com uma mão a dar-lhe ímpeto e outra a lhe dar direção.

Ainda por cima, por herança latina, nossa língua tende a juntar informação numa só palavra. Já a de Clint Eastwood tende a agregar várias palavras para o mesmo efeito, por conta da sua gramática germânica. Não chegamos ao paroxismo de síntese do latim (que uso, por exemplo, para dar à pasta do computador onde armazeno as coisas que ainda estão sendo escritas o curto nome “scribenda”), como eles também felizmente deixaram para trás as palavras compostas do alemão, preferindo manter os espaços e acrescentar um que outro hífen para facilitar a leitura. Afinal, o inglês é uma língua nascida da necessidade de conversar com estrangeiros (ironicamente, dada a insularidade cultural dos EUA de hoje), enquanto o português surgiu da necessidade de nos separarmos dos falantes de espanhol. Mesmo assim, lusamente a velhinha sofria, enquanto a equivalente anglófona the little old woman used to suffer. São muitas palavras, mas invariáveis: os adjetivos não concordam com nada nem ninguém, sempre impassíveis como um mordomo britânico; os verbos no mais das vezes têm ao todo quatro formas, menos que as seis que qualquer verbo nosso terá em cada um dos dez tempos (aos quais se somam três formas flexionadas), num total de 67 conjugações possíveis para o mais regular dos verbos.

O resultado é que, estando as palavras ali alinhadinhas, sempre na mesma ordem e sem mudar em praticamente nada, acaba sendo tremendamente rápido passar-lhes os olhos e lê-las. Em ação, com verbos que sobem, descem e vão para os lados como coriscos cocainados. Já em português, mais ainda quando se quer falar bonito, é comum encontrarmos tours de force como o célebre “ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heroico o brado retumbante”, de que ficaria surpreso se um lusófono em cem souber a ordem direta. Que é – não é para você, amado e erudito leitor, que a posponho aqui, sim para aquele outro leitor, que raramente aparece, mas que por isso mesmo tento tratar bem; peço seu perdão – “as margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico”. Margens, senhores, têm orelhas pro lado de baixo do Equador.

Não são, vejam bem, sinais de suposta superioridade ou inferioridade das línguas essas diferenças. São simplesmente sinais que apontam para suas origens e para os melhores usos delas. A língua inglesa fez da narração de correrias uma forma de arte inimitável, mas demanda do candidato a poeta uma sensibilidade raríssima, muito superior à que bastaria para produzir coisas de beleza intensa no nosso vernáculo. Uma das razões por que Shakespeare é Shakespeare é seu talento verbal inigualável, suas imagens fortíssimas, suas construções que soam tão bem que acabaram por se tornar lugares-comuns na língua que ajudou a criar. Seu talento dramático é enorme, claro, mas não é esse o segredo. Ao traduzi-lo para o português, permanece o drama, enquanto a beleza das construções, quando na mão de um bom tradutor, pode até ser aprimorada. É o caso, por exemplo, da célebre adição de uma palavrinha pelo grande Millôr Fernandes: “há mais coisas entre o Céu e a Terra, Horácio, que sonha a vossa filosofia”. Em inglês o ritmo teria sido quebrado, mas o português é flexível o bastante para aguentar tal vanglória.

Por outro lado, traduzir Os Lusíadas para o inglês é jogar fora o grosso da obra, quase como o que se faz ao traduzir Mike Spillane ou Tom Clancy para o português. Ainda no começo do nosso namoro, minha depois esposa me pediu umas poucas vezes que lhe traduzisse letras de músicas americanas que achava bonitas. Foi tamanha a decepção que a regra depois de casados passou a ser que eu estava proibido de traduzir letras de música americana para ela, especialmente de músicas de que ela gostasse. Isso a fez perder algumas joias aqui ou ali – uma que outra letra dos Beatles, Doors ou Cole Porter – mas no geral, creio eu, a regra era sábia. Quem ouve Ray Charles sem entender pode viver a feliz ilusão de que as letras do que canta são melhores que a média das letras de música baiana de carnaval, mas infelizmente não é o caso. Já o gringo que se delicia com a bossa-nova no mais das vezes não tem como ter noção da beleza das letras, coisa tão comum na nossa música que a achamos normal. Mas não é qualquer língua nem qualquer cultura que apresenta os elementos linguísticos, musicais e culturais em geral que possibilitam que surja um Cartola, um Vinícius ou um Chico. Nem, muito menos, que consegue dar até mesmo a gente não tão bem dotada de talento verbal a capacidade de fazer letras perfeitamente bonitas. O francês tem a riqueza linguística necessária, mas nem a fonética nem a cultura (anti) musical ajudam. O espanhol é quase parelho ao português neste aspecto, mas a intensidade exacerbada da alma ibera tende a fazer com que suas letras sejam sérias demais. Compare-se, por exemplo, a letra em espanhol de Perfídia com a letra em português cantada pelo grande Alceu: a versão brasileira é tão leve que pode se dar ao luxo de exacerbar o bolerismo dramático da coisa, sem ficar ridículo.

Já em inglês, a penúria lírica é a regra. O fato de o grosso das palavras serem monossilábicas deveria ajudar, mas a dificuldade de rimar e o fato de toda frase estar “engessada”, sem poder mexer uma palavrinha daqui para lá, eliminam totalmente tal vantagem. Em inglês tudo tem o seu lugar na frase, e é o lugar que importa. Qualquer palavra que se pespegue no lugar reservado ao verbo vira verbo, e adjetivo se no lugar do adjetivo for posta. A mulherzinha americana, irritada com o marido que a fica chamando de “querida” no meio da briga, bradará sem pensar que ele pare de “queridá-la”. Em inglês funciona. Há ainda o fato de se poder enfileirar uma multidão de adjetivos antes do substantivo, formando um sintagma monstruosamente grande cuja “resolução” é dada pela última palavra, característica que faz do inglês a melhor língua possível para xingamentos em geral. Já para poesia, bom... melhor tratarmos de comércio.

A língua inglesa fez da narração de correrias uma forma de arte inimitável, mas demanda do candidato a poeta uma sensibilidade raríssima, muito superior à que bastaria para produzir coisas de beleza intensa no nosso vernáculo

Uma das ferramentas da sociolinguística para perceber o que é importante para uma cultura é ver quais são as irregularidades que persistem nela. Afinal, só estando sempre na boca do povo uma irregularidade não desaparece, ou bem sendo “corrigida” até que o erro vire a regra ou bem sendo substituída por outra expressão (como o nosso castiço “aceder a”, já sendo baixado à cova pelo “acessar”, tão mais fácil). Então; quando se percebe que em inglês são irregulares praticamente todos os verbos relativos a comércio (comprar, vender, emprestar etc.) quanto os relativos à alimentação (comer, beber...) vemos claramente que se trata de uma língua materialista. Não digo que se trate da língua de um povo materialista – há diferença, ainda que a língua tenda a restringir o pensamento àquilo que nela pode ser expressado – porque o inglês é uma mixórdia, uma mistura de um monte de línguas diferentes, criada para que gente que não tinha uma língua comum conseguisse conversar. Há alguns elementos dele que mostram isso de maneira até dolorosa.

Na época do famoso Robin Hood, por exemplo, a Inglaterra – originalmente celta, depois invadida por romanos, depois por anglos e saxões da atual Alemanha – era dominada por normandos, vindos da França de hoje. Os pobres falavam uma mistura de línguas celtas e germânicas, mas a elite comunicava-se em francês. Daí o nome dos bichos – palavra que importa para quem trata deles, mas não os come – ser de origem germânica e o nome da carne de cada bicho ser em francês. “Carneiro”, em francês, é mouton, exatamente a palavra inglesa atual para a carne do carneiro. Já o bicho, tadinho, é sheep. A carne do porco é pork, também em francês, mas o bicho é hog. E por aí vai.

Até hoje em inglês as palavras de origem latina (para nós facílimas, evidentes mesmo) são a marca de um falar sofisticado, pedante. Há inclusive programinhas de computador que determinam a escolaridade necessária para ler um texto a partir da quantidade de palavras “difíceis”, irmãzinhas das nossas. A própria gramática, para fúria de muita gente boa e apaixonada pela língua viva, tem regras que são decalque claro do latim, regras que tentam forçar a gramática germânica do inglês a conformar-se a uma estrutura latina, mais “chique”.

Não digo que mais diferente impossível, porque sempre há casos piores. Os bons jesuítas do século 16, por exemplo, chegaram à conclusão de que era perfeitamente inútil tentar ensinar japoneses de mais de 7 anos de idade a falar, ou mesmo apenas ler, o latim. As línguas eram tão diferentes que seria quase como forçar o pobre nipônico a pensar ao contrário.

O fato é que a diferença é enorme, mais ainda quando se resolve começar a escrever em estrangeiro entre o segundo e o terceiro netinho. E isso sem que ninguém na família tenha se apressado demais na obediência ao mandamento de crescermos e nos multiplicarmos. Pelo menos eu tenho contato com a língua de John, Paul, George e Ringo desde pequeno, ainda que tenha sido a minha quarta língua em termos de realmente tentar entender o que me era dito e responder (francês na casa materna, espanhol – ou antes portenho – na paterna, e português na escola e na rua; o inglês soava no meu toca-discos). Mesmo assim, vejo nessa transição muito de semelhante ao que venho fazendo em outro campo.

Toco saxofone há coisa de 40 anos, e só agora, depois de velho, resolvi aprender a tocar piano. Para conseguir chegar ao meu objetivo de tocar jazz no piano, mesmo tendo estudado harmonia, mesmo tendo ouvido bom piano de jazz a vida toda, tive de passar uns aninhos estudando piano clássico para que meus dedos aprendessem a fazer aqueles prodígios todos. Imagino que para um nativo anglófono querendo escrever em português seja muito parecido; a minha experiência linguística, ou translinguística, contudo, seria perfeitamente coerente com a passagem do piano ao saxofone. Só para começar, o acompanhamento no sax consiste em tocar riffs, coisas simples. Já no acompanhamento de jazz ao piano, a mão esquerda toca uma linha de baixo, no mais das vezes em arpejos quebrados e ritmados, enquanto a direita toca os pedacinhos “certos” dos acordes, nos tempos “certos”. Não só é muita sutileza, mas é um monte de sutilezas diferentes ao mesmo tempo. Por outro lado, a riqueza de expressão do sax – que numa mesma nota pode mudar de timbre, modular, soluçar, fazer o diabo aquático (©Vicente Matheus) – não é alcançável nem em sonho por um piano tocando uma nota de cada vez. São linguagens diferentes, com riquezas diferentes, com recursos nada semelhantes.

É o que acontece com as línguas. Por isso mesmo dizia a minha saudosa mãe, também profissional da palavra, que aprender uma língua nova é como abrir uma janela numa parede antes fechada: abre-se para nós toda uma nova vista, uma nova visão de mundo, que só pode nos enriquecer. Ainda que a duras penas.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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