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Joseph Goebbels discursa em Berlim, em agosto de 1934.
Joseph Goebbels discursa em Berlim, em agosto de 1934.| Foto: Georg Pahl/German Federal Archives/Wikimedia Commons

Exatamente 125 anos atrás – no dia 29 de outubro de 1897 – nasceu um político que tem tudo, tudíssimo a ver com muita coisa que se vive hoje e que se viverá amanhã e depois: Paul Joseph Goebbels. O cargo em que alcançou celebridade, ou antes infâmia, foi o de ministro da Propaganda do governo alemão de 1933 a 1945. O sujeito era ruim que nem cobra, mas de burro não tinha nada. Era, aliás, doutor em Filologia, como o grande escritor e gente boníssima Tolkien. Ao contrário de Tolkien, contudo, que criou fantasias belíssimas, tornadas tão populares que muita gente por aí as conhece e não sabe que saíram de sua cabeça brilhante, as mentiras de Goebbels eram só isso: mentiras.

A ficção literária, afinal, é uma forma de mentira; ao contrário da mentira propriamente dita, no entanto, ela é uma mentira que serve para apresentar uma verdade mais verdadeira que qualquer caso particular dela. Platão, que não gostava de mentiras e queria expulsar os poetas (os romancistas de seu tempo) da sua cidade utópica, dizia que temos de conhecer inúmeros casos de alguma coisa para que consigamos vislumbrar o que está parcialmente oculto por trás de cada um deles. Conheceríamos o Amor tendo muitos amores, por exemplo. A ficção, de uma certa maneira, é uma espécie de atalho em que se pode conhecer de forma mais pura e menos dolorosa (a cada amor que se conhece corresponde um coração partido, afinal...) uma realidade que vamos acabar encontrando ao longo da vida, e que é bom sabermos reconhecer. Para o bem e para o mal.

Já as mentiras nada literárias de Goebbels eram o oposto diametral disso. Pode-se dizer que em enorme medida foi ele quem “vendeu” Hitler ao povo alemão. Naquele tempo, lembro, o meio de comunicação de massa mais comum era o jornal. O rádio era novidade, o cinema mais ainda. Mas a inteligência maligna de Goebbels fez com que ele percebesse rapidamente a importância de controlar todos os meios de comunicação. Até uns anos atrás, achávamos que essa possibilidade de controle por parte do Estado dos meios de comunicação havia chegado ao fim com a possibilidade de cada um publicar o que bem entendesse na internet. E, realmente, havia pouca diferença entre a apresentação de uma página de internet feita em casa e a de um jornalão. Mas aí surgiram as redes sociais, e com elas voltou a possibilidade de controle. De censura. De proibição de dizer o que os poderosos, os Goebbels de hoje, não querem que seja dito.

A inteligência maligna de Goebbels fez com que ele percebesse rapidamente a importância de controlar todos os meios de comunicação

O Diabo é dito “pai da mentira”, e também é dito manco. Goebbels era também manco, tendo talvez assim saído ao avô. Afinal, tal como ocorre com poderosos de nossos dias, a mentira, a censura e a meia-verdade em que por fora bela viola e por dentro pão bolorento eram seu ninho, seu habitat. Das trevas profundas daquela caverna uterina composta da mais pura mentira veio o controle do Manco sobre a sociedade alemã. Os filmes que mandou realizar eram tão bem feitos que até hoje são capazes de emocionar quem não tenha claríssima diante dos olhos a maldade do que pregam. O nazismo, afinal, foi como a abertura de uma sucursal do Inferno na terra, completa com as labaredas que serviam para cremar os restos de gente inocente, chacinada com a complacência de uma população hipnotizada pela arte da mentira goebbeliana. Uma população que só tinha acesso às mentiras que ele pregava e mandava pregar, no rádio, no jornal, na televisão, na música, no teatro, e por isso acreditava.

Uma população que esse filho da mentira, neto do diabo, conseguiu – pela censura de informações e pela mentira e meia-verdade friamente calculada – convencer de que o ex-presidiário que comandava o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães não só era honesto, como inocente. Puro como um anjo, do lado do pobre, do lado do explorado, do oprimido. Mas sabemos todos, agora que Goebbels foi ao encontro de sua recompensa no outro mundo e não pode mais censurar nem pregar suas mentiras, que Hitler não foi preso injustamente. O problema, poder-se-ia dizer, não foi sua prisão, sim sua libertação. Afinal, nas mãos de um crápula como Goebbels sua passagem pela prisão acabou por lhe dar uma aura de mártir sofrido, de paladino dos Trabalhadores que davam nome a seu Partido.

Hoje, tendo farto acesso a tantas informações que Goebbels ocultava da população alemã, sabemos aquilo que lá e então alguns poucos podiam sussurrar, com cuidado para não serem ouvidos. Afinal, até uma palavra “errada” num papo entre amigos poderia bastar para que a Gestapo – a polícia política nazista – batesse à porta do cidadão inocente, culpado apenas de não concordar com os horrores propostos e postos em prática. Alguns poucos tiveram a hombridade de receber a Gestapo com granadas e balaços de fuzil, mas foram poucos. Como disse o grande sábio russo Soljenitsín acerca da igualmente temida polícia política da Rússia comunista (cuja bandeira era do mesmo vermelho que a dos nazistas, mas tinha uma estrela acima de tudo, além de umas ferramentas para justificar a mentira de ser o Paraíso dos Trabalhadores), se cada pessoa que ela foi buscar tivesse tido a coragem de resistir, ficaria tão difícil cumprir as ordens dos monstros no poder que eles acabariam perdendo a autoridade de que ilicitamente se apoderaram.

Hannah Arendt percebeu que o carrasco nazista Adolf Eichmann não passava de um burocrata. De um empurrador de papéis, que ao empurrá-los eficientemente conseguiu levar à morte milhões de inocentes. Quanto dessa banalidade do mal que ela diagnosticou pode ter sido causada pela censura e pelas mentiras – pela propaganda, em suma – de Goebbels? Eichmann era um homem do Partido, mas para cada homem do Partido em ação genocida direta houve milhares de pessoas normais, pessoas mornas que, por sua inação, permitiram que o Holocausto ocorresse. Ou até que, seduzidos pelo canto da sereia da manipulação dos meios de comunicação pela inteligência quase demoníaca de Goebbels, concordaram com aquilo tudo, acharam ótimo o assassinato de milhões de inocentes e trabalharam com afinco nos seus empreguinhos só para garantir que tudo fosse feito, e bem feito.

Podendo ver com o distanciamento que o desenrolar de quase um século nos dá, o perigo da manipulação da informação fica claro. O perigo de haver um poderoso inescrupuloso controlando o que pode e o que não pode ser dito, mandando calar a uns que falam a verdade e garantindo que outros mintam à vontade. Após o breve episódio de liberdade de expressão proporcionada às mancheias pela fase inicial da internet, em que bastava saber escrever para poder publicar em pé de igualdade com organizações multimilionárias, a nossa situação atual mostra seus perigos. Não nos esqueçamos que o próprio dono do Facebook, “aconselhado” pela Polícia Federal americana, escondeu informações que teriam custado a Biden a eleição. Melhor dizendo, “escondeu”, não: censurou. Não foi sequer necessária uma ordem formal; bastou que os representantes do Poder fossem sussurrar-lhe ao pé do ouvido que era melhor que tais informações não viessem a público.

Soubemos porque ele contou. E quanto a tantas outras coisas que ninguém fora de um círculo relativamente estreito sabe, coisas que se fossem veiculadas poderiam custar eleições a candidatos preferidos pelos poderosos? A censura, a propaganda descarada, deslavada e despótica que Goebbels foi o primeiro a saber usar, tocando a mídia alemã como um bom maestro toca uma orquestra, pode levar muita gente a concordar com absurdos. Com coisas que, fora daquele contexto de informação restrita, seriam evidentemente percebidas como criminosas.

Com o distanciamento que o desenrolar de quase um século nos dá, podemos ver o perigo de haver um poderoso inescrupuloso controlando o que pode e o que não pode ser dito, mandando calar a uns que falam a verdade e garantindo que outros mintam à vontade

É por isso que se fala cada vez mais em “controle da mídia”, em censura, em obrigar que tudo o que é dito seja facilmente atribuído a quem disse. Ora, isso garante o fim das denúncias anônimas, tão importantes para que se descubra tantas coisas erradas, do crime comum a malfeitos corporativos ou administrativos, que é rara a polícia brasileira que não mantém um número de telefone exclusivo para tal. Se houver alguma que não o faz, nem sei.

A internet de hoje, em que a comunicação não é mais nem livre nem individual, faz com que tenhamos retornado às condições que tornaram possível a eficácia do Ministério da Propaganda que Goebbels dirigia. Antes da internet, publicava quem tivesse amigos nas direções dos jornais ou fosse rico o bastante para fundar o próprio jornal. Em outras palavras, havia uma centralização da informação na mão de muito poucos, o que tornava possível calar as vozes que ousassem se levantar contra a “verdade” que Goebbels queria que fosse pregada, e que podia perfeitamente ser contraditória ou mesmo contrária à “verdade” que na véspera ele mandara apregoar. “Verdades” oficiais, afinal, bem como seus corolários hoje tratados de fake news, mudam, e mudam muito. Basta ver as idas e vindas das verdades oficiais durante a pandemia: no começo máscaras eram desnecessárias, e depois tornaram-se obrigatórias. As vacinas prometiam proteger contra a infecção, de si e dos outros, mas poucos dias atrás um desses órgãos de censura terceirizada declarou que isso de se ter garantido que as vacinas protegeriam contra a infecção era... fake news.

Era assim que Goebbels agia, e é assim que até hoje agem seus êmulos. Verdades cambiantes. Censura àquilo que saia da linha do Partido no momento. Mentira, em vastíssimas proporções, repetida e regurgitada por toda parte, até o ponto em que a população de um dos países então mais cultos, mais civilizados do mundo (pace Chesterton) aprovasse por ação e por omissão o assassinato brutal dos inocentes, a eugenia, o genocídio.

Disse o monstro que “a propaganda funciona melhor quando os que estão sendo manipulados têm certeza de que agem por vontade própria”. Isso ocorre porque o mais crucial da propaganda não é apenas vender um peixe podre, uma mentira, mas também cercear o contraditório, de tal maneira que aquilo pareça tão óbvio que a pessoa não se sinta manipulada. O ex-presidiário é inocente. É um mártir dos trabalhadores. Só quer o bem do povo. É o homem mais honesto do mundo... sem acesso ao contraditório e ouvindo aqueles absurdos vindos de todos os meios de comunicação, as pessoas conseguiam convencer-se de estarem pensando com a própria cabeça. “Aqueles que a propaganda deve convencer devem estar mergulhados por completo nas ideias propagandeadas, sem mesmo o notar.” Em outras palavras, a propaganda deve criar um ambiente de mentira permanente, que seja a água em que nadam os “peixes”, os cidadãos comuns. É por isso que Theodore Dalrymple apontou como peculiaridade principal dos países atrás da Cortina de Ferro a constância da mentira. Era tanta mentira que as pessoas acabavam tendo mais confiança na propaganda mentirosa que nos próprios olhos. “Uma mentira suficientemente repetida”, ensinou Goebbels, “acaba sendo crida”; “uma mentira contada uma vez é uma mentira, mas contada mil vezes torna-se verdade”.

E a mentira, repito, tem dois lados: a sua afirmação e o silenciamento do contraditório. A verdade deixada solta é perfeitamente capaz de defender-se da mentira, e por saber disso Goebbels então e seus êmulos hodiernos suam a careca para calar todo contraditório. Calar a verdade. Toda a verdade, toda verdade.

“Imagine a imprensa como um grande órgão que o governo toca”, explicou o Filho da Mentira. Afinal, para ele seria “direito absoluto do Estado supervisionar a formação da opinião pública”. Os meios para isso existiam então: a concentração dos meios de comunicação em poucas mãos. Hoje eles existem de novo, e há quem sonhe em tornar-se grande organista da imprensa (em que podemos, claro, incluir tevê, rádio e redes sociais), pela mesmíssima razão que ele: por achar que o Estado deve ser maior que a soma de suas partes, deve ser a alma que guia o corpo composto pela população. Desde que, claro, sejam eles que guiam o Estado.

A verdade deixada solta é perfeitamente capaz de defender-se da mentira, e por saber disso Goebbels então e seus êmulos hodiernos suam a careca para calar todo contraditório. Calar a verdade. Toda a verdade, toda verdade

Para ele, era função da propaganda (“tocada” pelo Estado, claro) dirigir a agressividade da população contra os alvos que escolhesse. Os bodes expiatórios escolhidos foram os judeus, foi a Igreja... A Igreja foi atacada porque ia contra a falsa religião nazista (e Goebbels era o primeiro a admitir que o nazismo era uma espécie de religião); os judeus, por serem um alvo fácil. Não fossem eles, seriam outros. Afinal, o processo de escolher o alvo do ódio (e com isso impedir que os verdadeiros culpados dos problemas reais sejam identificados, que dirá atacados) importa menos que a existência de um alvo para o ódio, de um alvo que possa ser apontado: os burgueses, os kulaks, os judeus, os pretos, os brancos, os católicos, os protestantes, os animistas. Os partidários desse ou daquele político. Tanto faz, ainda que evidentemente não possam deixar de estar na lista de objetos de ódio propagandeados aqueles que possam ser obstáculos ao crescimento infinito do poder do ideólogo, como era o caso da Igreja.

E a lição goebbeliana foi bem aprendida. Quando lemos quase qualquer órgão de imprensa hoje vemos os mesmos “malvados”: gente que é atacada o tempo todo, cujos erros são amplificados e cujos acertos são censurados, cujas razões são negadas (“ele faz isso porque é ruim”), cujos direitos, em suma, desaparecem diante do frenesi de ódio que a propaganda tenta incitar. Por vezes ela consegue, por vezes não. Ainda há um resquício de liberdade de comunicação, possibilitando que por vezes se tenha como fazer com que o contraditório chegue a muita gente. Ai de quem for descoberto a fazê-lo, contudo! Nos dias de hoje ainda não há possibilidade de todas as formas de mídia serem totalmente dominadas, ao ponto de poderem ser tocadas por um só organista, com os pés e dedos mandando tocar aquilo alto e calar aqueloutra voz. Mas estamos nos aproximando disso, e é isso que está nos planos. Em planos já postos em ação por todo o antigamente dito Mundo Livre.

O conselho goebbeliano de não publicar todas as notícias, sim fazer com que cada notícia publicada tenha uma razão, um propósito que justifique sua publicação, é hoje em dia mais a regra que a exceção. O exemplo mais cru, claro, é o da guerra aberta; desde que os americanos fizeram a besteira de deixar que jornalistas cobrissem campos de batalha na Guerra do Vietnã, e assim foram forçados pelo clamor popular a declarar vitória e fugir com o rabo entre as pernas, “notícias” do front jamais são realmente notícias, puramente informativas. Muito pelo contrário, aliás. Um órgão noticioso russo, como o Sputnik, apresenta “notícias” que nunca apareceriam num jornal americano, e vice-versa. Cada uma delas está ali por uma razão oculta, uma razão de Estado. Nem os russos nem os americanos estão querendo “informar” quem quer que seja, sim influenciar emocionalmente, pintar o próprio lado como sendo o Bem e o outro como sendo o Mal.

Nos dias de hoje ainda não há possibilidade de todas as formas de mídia serem totalmente dominadas, ao ponto de poderem ser tocadas por um só organista, com os pés e dedos mandando tocar aquilo alto e calar aqueloutra voz. Mas estamos nos aproximando disso

O mesmo ocorre no noticiário político dos países que formavam o Primeiro e o Terceiro Mundos. Há malvados e bonzinhos, e quem lê o que é publicado como notícia no jornal de um lado não reconhece o que é apresentado como tal no jornal do outro. Seria até correto, de uma certa maneira, por acabar com aquela palhaçada de fingir isenção enquanto se escolhe a dado o quê e como publicar. Mas quando o juiz começa a querer bater pênalti a coisa fica feia, e foi isso que o Goebbels ensinou a fazer. Foi isso que fizeram os agentes do FBI que foram bater um papinho com o Mark Zuckerberg.

O objetivo goebbeliano final é a criação de um “sistema de mídia em que diversidade aparente esconde uniformidade de fato”. Um sistema de mídia, em suma, em que um órgão de imprensa como este, que corajosamente nada contra tantas correntes de ódio, mentira e maldade, seja substituído por outro – quiçá com o mesmo nome – em que o “malvado” da vez seja o mesmo dos outros órgãos de imprensa, diferindo apenas o grau de suposta indignação em relação a suas supostas maldades. Em que o que os outros tratam de salvador da pátria seja tido por mero grande estadista. E por aí vai. Falsa diversidade, uniformidade de fato. Todo mundo odiando o mesmo malvado e amando o mesmo bonzinho. Ainda que este seja um ex-presidiário, justamente condenado, mas infeliz e injustamente libertado, balançando uma bandeira vermelha. Com aquele bigodinho ridículo.

Ou não.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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