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Detalhe da “Natividade”, de Giotto, na Capella dei Scrovegni, em Pádua (Itália).
Detalhe da “Natividade”, de Giotto, na Capella dei Scrovegni, em Pádua (Itália).| Foto: José Luiz Bernardes Ribeiro/CC BY-SA 4.0/Wikimedia Commons

Esta noite chega o Natal. Com tanta besteira, tanto comercialismo crasso superposto ao Natal verdadeiro, por vezes parece até difícil encontrá-lo por baixo de tudo. O Natal do comércio e da mídia é uma coisa fofinha, uma vaga celebração de um gostar-de-todo-mundo mais falso que nota de três reais. Presentes para todos (ou pelo menos para os que “merecem”, para os que têm dinheiro...), a rubicunda figura de um velho de vermelho vestido para uma temperatura dezenas de graus abaixo da real, e muita comilança.

O que com isso se tenta ocultar, todavia, é algo tão infinitamente maior que é até compreensível que o terror nos domine ao ponto de querermos, de buscarmos ativamente, esconder a realidade por baixo de toda essa fofura comercial. Afinal, o Natal é a celebração de algo a priori impossível, de algo tão grandioso, tão fantástico, que a mente humana não consegue jamais compreender. 2022 anos atrás, o próprio Criador de todo o Universo, forçosamente maior que o universo que criou, maior que as galáxias, que o Sistema Solar, que nosso planeta, violou a muralha de separação ontológica entre Aquele que É (como Ele Se apresentou a Moisés: “Eu-Sou”) e nós outros todos, que meramente estamos.

Toda criatura poderia existir ou não, e começou a existir em algum momento, numa nova configuração da mesma matéria do início dos tempos. Já dizia poeticamente Carl Sagan que somos feitos da poeira das estrelas. Mais prosaicamente, podemos dizer que somos feitos da terra, como na Escritura, ou mesmo feitos dos bifes, alface, batatas fritas e feijão com arroz que nos deram os átomos da nossa conformação atual. O fato é que meras décadas atrás não estávamos por aqui. Meros milhões de anos atrás tampouco estava por estas bandas esta ou aquela montanha, e meros bilhõezinhos de anos mais além nem mesmo o continente, e antes o planeta, e antes a estrela ao redor do qual ele habita. Tudo isso meramente está, não é, por ter havido um momento, um longo momento, em que aquilo não estava presente, e por estar também por vir um tempo em que não mais esteja.

Tudo foi virado de ponta-cabeça naquela estrebaria, com o Todo-Poderoso chegando não como Justo Juiz, mas como bebê precisando de proteção

Já Aquele que criou tudo, até por não ter início no tempo (que Einstein diz ser outra dimensão, como as três do espaço) nem estar contido nalgum lugar do espaço, pode por isso mesmo ser dito que é, não meramente está. E o Natal é a comemoração do momento em que o Eterno adentrou o efêmero, em que Aquele que É passou a estar. Estar num momento do tempo – 2022 anos atrás –, num lugar no espaço – Belém da Judeia – e, coisa ainda mais crucial, tendo uma natureza criada, a mesma nossa. O Criador fez-Se criatura, e dentre as criaturas fez-Se homem. E, mais ainda, não Se fez um homenzarrrão forte e poderoso no centro do mundo, mas um bebezinho inocente, nascido numa estrebaria por não terem Seus pais achado pousada, numa cidadezinha insignificante de um canto insignificante do mundo de então.

É uma reviravolta maior que o possível, maior que o imaginável, e por isso mesmo é o centro do nosso calendário. Nunca ocorrera nada nem remotamente tão importante, e nunca ocorrerá. Nem o Fim do Mundo, tão temido e tão projetado por toda raça de pensadores e profetas, haverá de ser tão importante. Afinal, em tal evento espera-se que o Criador rebaixe-Se apenas à função de juiz de todos, função muito acima da condição de qualquer criatura, mas mesmo assim sinal de uma atenção imerecida dada às criaturas por Quem poderia perfeitamente ignorá-las depois de as ter criado. A única coisa espantosa em tal ocasião, nas versões dela mais comumente preditas, é justamente a que decorre do evento tão espantoso do Natal: o fato de que o Justo Juiz será (é!) Aquele ser humano que nasceu no dia de hoje, dois milênios e pouco atrás.

Tanta coisa decorre disso nestes 2 mil anos de história que é até difícil para nós, até mesmo para quem não tenha tido qualquer exposição à doutrina cristã, perceber o quanto o mundo mudou. Só para começar, é da crença na Encarnação divina naquele menininho naquele lugar que decorre a noção hoje ainda um tanto ou quanto em voga (ainda que cada vez menos, infelizmente) de que os seres humanos todos temos uma dignidade infinita, que nos vem do próprio fato de sermos humanos. Até coisa de 2 mil anos atrás, seria impensável achar que um pobre poderia ser melhor de alguma maneira que um rico, ou mesmo que tivesse direitos inalienáveis decorrentes apenas de sua condição humana. Até coisa de 2 mil anos atrás, ninguém levaria a sério a noção de que uma criança – inútil e incapaz em sua condição de criança – tivesse quaisquer direitos que não aqueles que seus pais (estes, sim, cidadãos plenos) lhe quisessem atribuir. Até coisa de 2 mil anos atrás, a noção de que uma mulher pudesse ser não apenas tão boa quanto um homem, mas, mais ainda, muito melhor que todos os demais seres humanos, seria algo que nem como piada poderia ser cogitado.

Mas hoje, em nossos tempos de decadência, tudo isso se nega. Nega a dignidade humana quem romanticamente queira estendê-la às vacas, cachorros, cavalos e galinhas. Nega a dignidade humana quem quer fazer da criança no ventre propriedade absoluta da mãe, dando à mãe sobre a filha ainda não nascida o poder de vida ou morte que o patriarca de uma família romana tinha sobre todos os habitantes de sua casa. Nega, ainda, a dignidade humana quem quer vê-la depender de documentos, vacinas, ou irrelevâncias do gênero. Nega-a, finalmente, quem divide a única raça humana em grupos identitários construídos a partir de irrelevâncias fenotípicas e/ou étnicas.

Nunca houve e nunca haverá “chacoalhada” maior nas nossas arrogâncias, nos nossos cuidadosamente construídos mundinhos de fantasia, como aquela noite que romanticamente se canta ter sido “noite feliz, noite de paz”. Tudo foi virado de ponta-cabeça naquela estrebaria, com o Todo-Poderoso chegando não como Justo Juiz, mas como bebê precisando de proteção. E precisando muito, já que previsivelmente os poderosos de seu tempo logo quiseram matá-l’O, tendo tido Sua família de fugir e tornar-se refugiada no Egito. Imigrante. Pobre. Estrangeira. Mas mesmo assim, naquele grupo de gente à margem da sociedade egípcia, o mais aparentemente frágil era Aquele que tudo criara e tudo poderia destruir, se assim o quisesse.

Por que não vir de uma vez como Juiz? Já não seria uma atenção imerecida prestada a estas criaturas tão falhas que somos (ou melhor, estamos)? Ao vir como neném indefeso, Ele nos forçou a olhar para os indefesos ao nosso redor. Ao vir pobre, ele nos forçou a reconhecer o pobre e sua dignidade humana. Ao vir como homem – não como anjo ou monstro mitológico –, Ele nos ensinou o valor de tudo o que é intrinsecamente humano.

Nossa sociedade quer o oposto do que paradoxalmente não consegue deixar de lembrar, por mais que tente esconder a verdadeira natureza do Natal. Ela não quer que o Criador olhe para nós; ao contrário, quer que Ele nos esqueça como nós O esquecemos

É até triste ver como o reducionismo comercial do Natal tenta – sem muito sucesso – projetar alhures este recado divino a nós que estamos por aqui. Há uma musiquinha adocicada que pergunta “como é que Papai Noel não se esquece de ninguém? Seja rico ou seja pobre, o velhinho sempre vem”. Ela chega a ser odiosa, quando nos damos conta de que a sociedade em decadência faz dos presentes a razão de ser no Natal, mas certamente não é o caso de que “Papai Noel não se esque[ça] de ninguém”. Muito pelo contrário, aliás: o espantalho encasacado escolhido como substituto d’Aquele que veio nos mostrar verdades tão dolorosas cumula de bens os ricos e despede os famintos sem nada, invertendo o cântico do Magnificat.

Nossa sociedade quer o oposto do que paradoxalmente não consegue deixar de lembrar, por mais que tente esconder a verdadeira natureza do Natal. Ela não quer que o Criador olhe para nós; ao contrário, quer que Ele nos esqueça como nós O esquecemos. À Encarnação divina, prefere-se a vinda de ETs criados à nossa imagem e semelhança, que como Reis Magos interplanetários nos tragam ouro, incenso e mirra. Ou, antes, ouro (este é indispensável!), falsas “sabedorias”, e alguma receita para nos manter para sempre na adolescência.

Afinal, a mirra – versão antiga do formol – é um símbolo da morte, e tendo o Criador adotado a natureza humana fez-Se Ele também sujeito à morte. Já o incenso é símbolo das tentativas humanas de reverenciar o divino. O divino real – cujos vislumbres não cessamos de perceber na beleza de Suas criaturas – dói demais para ser tolerado por uma sociedade que usa tanto de antidepressivos que se vem empregando a presença de seus metabólitos na água para medir a presença humana. Melhor fantasias de falsas sabedorias, idealmente, como escrevi acima, trazidos por ETs tão perfeitamente correspondentes à nossa autoimagem fantasiosa que seria difícil criá-los propositadamente como personagens de ficção. A morte, bom, nem deveria ser necessário falar nela, mas justamente por ser tabu que se o faça torna-se necessário apontá-lo. Ela faz parte do que é ser homem. Não se o é sem se ter de lidar com ela, por mais que nossa sociedade superprotetora tente fingir que ela não existe, busque escondê-la por trás das portas trancadas das UTIs e procure disfarçá-la de vida pela judiciosa aplicação de maquiagem aos finados (ainda) expostos em velórios de caixão aberto.

No Natal aprendemos que somos humanos, aprendemos a dignidade que temos e o quanto é difícil corresponder a ela. Aprendemos o quanto somos pequenos diante do Criador, e ao mesmo tempo o quanto somos amados por Ele

Tudo isso, contudo, nos é apontado pelo Natal que se tenta esconder. A vida nova do bebê que chega aponta a morte que um dia virá; a visita “de Estado” dos Reis Magos sublinha o contraste entre o poder absoluto do Criador e a fragilidade humana, de que a do bebê é apenas sinal; o incenso que sobe é como uma rampa para a descida do Criador a criatura; humilhação e diminuição de si tão além da mais significativa que qualquer ser humano possa um dia fazer.

No Natal, do Natal e com o Natal aprendemos que somos humanos, e aprendemos ao mesmo tempo a dignidade que temos e o quanto é difícil corresponder a ela. Aprendemos o quanto somos pequenos diante do Criador, e ao mesmo tempo o quanto somos amados por Ele. Aprendemos a encontrar o Criador nas criaturas todas, e não só nas bonitas ou mesmo magníficas; podemos agora vê-lo no bebê de família pobre, como Ele mesmo escolheu vir, e, mais indiretamente, em todas as Suas demais criaturas, da formiga à montanha, da flor à galáxia.

Afinal toda a Criação, todas as criaturas foram elevadas quando o Criador fez-Se um de nós, quando o Verbo Se fez carne e habitou entre nós. Dentre as criaturas todas o homem, tornado conatural do próprio Criador, teve seu papel, digamos, “ecológico”, reiterado da forma mais clara possível. Aprendemos no, do e com o Natal as tantas responsabilidades que nos cabem, para com os irmãos homens e para com as demais criaturas. Não nos cabe nem apagar as diferenças nem criá-las onde não existem, mas como é difícil fazê-lo!

O mais fantástico de tudo isso, no entanto, o mais lindo e mais apaixonante, é que todo esse recado do Criador, dado por atos, não mais só por palavras, é uma aula magna daquilo que a Ele nos une, daquilo que é a união da própria Trindade Santa e, mais ainda, deve ser o que nos move ao lidar com os demais homens e com as demais criaturas: o amor. Tudo o que o Natal nos mostra, tudo o que ele nos ensina, pode ser assim resumido: o Natal é a festa do amor.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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