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Desembarque aliado na Normandia, em 6 de junho de 1944.
Desembarque aliado na Normandia, em 6 de junho de 1944.| Foto: Robert F. Sargent/US Coast Guard/National Archives and Records Administration/Domínio público

A cada dia me parece mais claro que a droga mais perigosa é coisa natural, naturalíssima: a testosterona. É ela que faz com que os homens façam loucuras, via de regra motivadas pelo desejo de arrancar de alguma moça um sorriso, mas muitas vezes extrapolando ao ponto de arrancar delas antes gritos de horror. É a testosterona que fez com que algum homem das cavernas, vendo um tronco queimado por um raio descendo um rio, pulasse dentro dele para ver aonde ia e assim iniciasse a longa aventura humana da navegação. Foi igualmente a testosterona que levou alguns loucos a amarrar-se em pipas ou balões de ar quente e iniciar outra aventura humana, a aviação. Até mesmo, diria eu, a ideia de jerico de deixar uma caverna quentinha e segura para morar numa choça de folhas mais próxima aos territórios de caça (e portanto mais exposta a outros predadores que não o homem) só pode ter sido devida ao mesmo veneno. Imagino o desespero da pobre mulher das cavernas, arrastada por seu maridinho querido à novidadosa situação que, milênios depois, veio a dar na vida urbana.

Hoje corremos o risco oposto, todavia: há estudos e mais estudos apontando uma queda generalizada do nível de testosterona dos homens dos países mais ricos. A coisa ficou tão feia que uma série escandinava sobre uma invasão russa ficcional coloca a resistência nas mãos das mulheres e seus amantes terceiro-mundistas; aos homens locais faltaria testosterona suficiente para tais aventuras. Nós, terceiro-mundistas, ainda a temos, para bem e para mal. Como é a sociedade que dá caminhos a seus membros, uma sociedade desprovida de quantidade suficiente de tal hormônio nos corpos de seus filhos acaba sendo uma sociedade extremamente pacata, pacata demais, mesmo. Já uma sociedade em que não falta testosterona, como a nossa, deveria dar àqueles em que abunda o hormônio caminhos de vida que lhes interessem. Na nossa, dada a confusão social e a ficção legislativa de sermos todos escandinavos, estes vêm rareando. Ainda existem, é verdade, mas vão rareando.

Um colega meu na polícia, por exemplo (a polícia acaba sendo um dos caminhos buscados pelos que apelido “testosteromens”), não andava armado para não matar ninguém. A prova do acerto de sua escolha estava nas dezenas de processos a que estava sempre respondendo por ter tacado a mão em alguém. Testosterona demais. Sua pobre e sofrida esposa acostumou-se tanto com suas puladas de cerca que criou dois filhos dos muitos que ele fez na rua, igualmente movido pelo tempestuoso fluxo testosterônico em suas veias. Eu sempre brincava com ele, dizendo que se ele houvesse nascido 500 anos antes teria virado o cacique de todas as tribos da região, em vez de responder a tantos processos por agressão e dar tanto desgosto à santa esposa (de quem, aliás, ele cuidou admiravelmente durante a luta dela contra um câncer: isso também pode ser posto na conta da testosterona).

Numa evolução que se pode dizer começada pela invenção da besta – arma que mata de longe até mesmo quem vista couraça –, a tecnologia foi tomando o lugar da coragem

Há aqueles, todavia, em quem é tanta a testosterona que não bastam os caminhos apresentados pela sociedade, com todas essas restrições tão bem ilustradas pelos processos a que respondia meu amigo. Um deles apareceu na mídia em fotografia magnífica durante os protestos de 2014. Seguro como uma fera enfurecida por policiais militares, com marcas vermelhas de balas de borracha no peito, Rafael Lusvarghi rosnava e tentava se libertar. Foi então, nessa primeira aparição na mídia, que se veio a saber da história desse testosteromem, desse homem tão dominado pelo hormônio. Foi soldado PM em São Paulo e oficial PM no Pará. Parece que em algum momento tentou juntar-se à Legião Estrangeira (clássico refúgio dos testosteromens, aliás), mas por alguma razão o projeto gorou. Tendo aprendido russo, foi meter-se numa guerra que não era dele, unindo-se aos exércitos separatistas das repúblicas “populares” (leia-se comunistas) que desde 2014 tentavam tornar-se independentes da Ucrânia e que há pouco foram absorvidas pela Rússia. Creio ser bastante evidente que o que o há de ter motivado não foi algum amor pela independência daquele pessoal, sim a possibilidade de – obedecendo antes à testosterona que à razão – arriscar a própria vida em feitos heroicos, matar para não morrer, correr, pular, tirar vidas e salvá-las.

O trabalho policial tem raros momentos desta natureza, e por definição o ideal é evitá-los ao máximo. Com razão, os franceses chamam os policiais de “guardiães da paz”. A polícia deve procurar sempre a resolução pacífica e legal de conflitos, sendo a bolacha e a bala recursos últimos, a evitar o quanto se puder. Apenas quando o policial se vê diante de um agressor enlouquecido pela droga (testosterona inclusive, como na fotografia que lançou Rafael no noticiário nacional), surdo à razão e resolvido a continuar, deve a força ser empregada. Pudera que nosso testosteromem não aguentou. Para quem busca confusão, para quem o jorrar da testosterona torna a paz tediosa, o trabalho de guardião da mesma paz é um contrassenso.

Daí a guerra, daí a aventura. Assim como meu colega teria dado um excelente cacique num tempo anterior aos processos criminais e às braguilhas das calças, esse outro testosteromem no século 16 teria provavelmente conquistado para si um ducado ou principado e dado início a uma dinastia. Mas são outros os tempos; numa evolução que se pode dizer começada pela invenção da besta – arma que mata de longe até mesmo quem vista couraça –, a tecnologia foi tomando o lugar da coragem. E coragem, para o bem ou para o mal, é um dos tantos efeitos colaterais de tão forte estupefaciente hormonal.

Hoje mata-se à distância, pelo apertar de um botão. Hoje não há mais a possibilidade de construir-se um ducado, já que a tecnologia bélica é tanta que só contam as hostes de gente poderosa demais para deixar território cair nas mãos de aventureiros arrivistas. Daí não haver quase nenhum espaço para os testosteromens mais enlouquecidos, como o pobre Rafael. Como antes de o exército russo entrar na refrega os separatistas eram o Davi da história, o lado galante da batalha, foi a eles que ele se uniu. Faz sentido; a bendita testosterona leva no mais das vezes a tomar o lado do mais fraco, a defender o menos potente. Certamente, houvesse ele tido outros caminhos, entraria hoje na guerra do lado ucraniano. Seria a coisa galante a fazer. Mas fez o que fez quando fez, e, depois de sua aventura, ele caiu numa armadilha muito bem preparada pelo governo da Ucrânia e acabou sendo preso por aquelas bandas. Com o horrendo crescer da guerra, acabou tendo a sorte de ser libertado numa troca de prisioneiros e poder, assim, voltar ao Brasil.

Aqui, contudo, onde haveria espaço para tanta testosterona a não ser à margem da sociedade? Foi assim que acabou preso, menos de dois anos depois de ter saído das cadeias ucranianas. Estava envolvido com traficantes de armas e de drogas, e a mesma PM paulista em que ele tentara dar vazão àquela testosterona toda achou em sua casa 350 munições de calibre 9 mm e 25 quilos de maconha. Segundo ele, guardava a munição e a erva para terceiros, e por isso receberia R$ 3 mil por mês. Não me é dado conhecer seu coração e sua alma, mas, pelo brado retumbante de tanta testosterona em sua história, duvido que fosse coisa tão pacata. Como na história do maior testosteromem de nossa ficção, Um Certo Capitão Rodrigo, do Érico Veríssimo, quem nasce para guerreiro não aguenta ser bolicheiro.

O fato é que o pobre testosteromem está preso, por excelentes razões, e sairá da cadeia já um homem de meia-idade. Aventuras alucinadas e galantes, na meia-idade, podem ser patéticas, mortíferas ou ambas. Acabou para ele o tempo da testosterona, que a essa altura da vida é desviada para fins menos arriscados, como o crescimento de pelos nas orelhas.

Após os horrores das guerras do século 20 parecerem ter mostrado ao mundo o quanto a guerra é, nas imortais palavras de Sartre, uma “babaquice”, eis que a guerra volta pelas razões mais imbecis do mundo

Confesso que por um lado fico com pena; como disse, ele deu o azar de nascer no tempo errado. O excesso de testosterona que em outras eras teria feito dele um grande homem o fez na nossa, ao fim e ao cabo, um marginal. Até mesmo a galanteria de sua participação na guerra em defesa do ursinho separatista acaba sendo esquecida desde que o grande urso russo furioso entrou na guerra, invertendo Davi e Golias. Ele aparenta ser o tipo de pessoa que se quereria ter ao lado numa briga ou guerra, ou mesmo numa mesa de bar a regalar-nos com mentiras e verdades inflacionadas pelo mesmo hormônio, mas as escolhas erradas e a falta de caminhos para empregar produtivamente essa testosterona toda o levaram a situação que dificilmente poderia ser mais triste. Aquele que em outras eras poderia ter construído um ducado tem hoje apenas parco espaço no chão de uma cela de penitenciária; quem mandou nascer no tempo errado?

O fato, porém, é que a história dá voltas e reviravoltas mil, e eu sinceramente duvido que a parcidade de vias por onde desaguar tanta testosterona continue por muito tempo. Após os horrores das guerras do século 20 parecerem ter mostrado ao mundo o quanto a guerra é, nas imortais palavras de Sartre, uma “babaquice”, eis que a guerra volta pelas razões mais imbecis do mundo. A Sérvia e o Kosovo dela arrancado pela Otan há alguns anos parecem estar à beira de novo conflito, por causa de placas de carro. Coisa tão idiota, convenhamos, como a ficcional guerra swiftiana entre Lilliput e Blefuscu, causada por diferenças em relação ao lado “certo” por onde começar a quebrar a casca de um ovo cozido. É realmente necessário um tsunami de testosterona para conseguir começar uma guerra por razões tão comezinhas quanto placas de carro, ainda que depois dela iniciada baste ter níveis saudáveis do hormônio para mantê-la, matando e aleijando inocentes a granel no intuito de defender a própria nação, o próprio povo, contra gente igualmente aguerrida na defesa da própria nação, do próprio povo.

No longo prazo, na guerra entre a testosterona e o cérebro em geral quem costuma ganhar é a testosterona. Para o bem ou para o mal

Esse processo de destesteronização da sociedade moderna tem seu epicentro naquela mesma Escandinávia cuja ficção faz das mulheres e dos imigrantes os defensores, por falta justamente de testosterona entre os machos nativos. Ora, a mesma falta do mesmo hormônio leva os nativos a basicamente esquecer de se reproduzir, e por isso mesmo veem-se em grande medida forçados a importar imigrantes cheios de testosterona para substituí-los na deliciosa missão de fazer escandinavinhos. Ainda que tenha ido bem longe na sua destruição das oportunidades para testosteromens, essa onda nunca conseguiu atingir sequer a maioria da população americana (a despeito do que parecem indicar os resultados das eleições por lá), mesmo sendo os EUA parte integrante da mesma sociedade moderna disfuncional ora em vias de esboroamento.

Aqui, então, a coisa acaba sendo extremamente superficial, ainda que felizmente ainda seja possível tirar de circulação os mais antissociais dentre os dominados pelo hormônio. Em poucas gerações, dada a velocidade cada vez maior com que ruem as instituições modernas, é provável que os testosteromens mais vigorosos voltem a ter a chance de conquistar ducados e começar dinastias. Até lá, ficamos na encruzilhada entre uma sociedade formal que se crê composta de escandinavos destestosteronizados e uma população felizmente saudável.

No longo prazo, afinal, na guerra entre a testosterona e o cérebro em geral quem costuma ganhar é a testosterona. Para o bem ou para o mal.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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