A escola tem medo da rua. Que pena. Perpetuou-se a ideia da escola como espaço de segurança. Para piorar, essa perspectiva ganha reforço com a epidemia de violência que contamina o país. Os muros ficam cada vez mais altos. Mais numerosos os vigias, fiscais e bedéis. Os estudantes não vão às ruas. Nem as ruas passam pela vida dos estudantes.
É um “problema social”, como se diz. O mundo agressivo provoca, em troco, uma escola na defensiva. Pais cobram a vigilância severa quando o assunto é viver a cidade. Acha-se tudo isso natural. Mas há em paralelo um “problema conceitual”. É comum ouvir professores dizendo que felizes são os alunos europeus, que podem ir a museus, vivendo ali a experiência peripatética, andando por espaços que não o das carteiras e dos quadros negros.
É uma meia verdade. São de fato uns agraciados os estudantes europeus que podem ir ao Museu D’Orsay ou à Galeria Uffizi. Também temos nossos museus, e ainda que modestos eles bem podem ser nossa linha direta com o mundo. É prazeroso pensar o universal a partir do local. Sabendo temperar, essa conversa rende. Além do mais, temos as ruas em nosso socorro. Cada via – bonita ou feia, urbanizada ou não –, traduz, de forma sensível, o país que somos. É difícil admitir, mas com um pouco de esforço…
O primeiro passo para, digamos, converter a rua em material didático, em experiência pedagógica, é admitir a cidade como paisagem. Aprendemos pela cultura que apenas a natureza tem o status de paisagem, mas não. Ao entender a cidade como “natureza construída”, como biodiversidade, como organismo, o que se faz, a seguir, é contemplá-la. Ou como diz o filósofo Nelson Brissac Peixoto, no livro Paisagens urbanas, decifrá-la, como a um enigma.
Ora, não há outro caminho para tanto senão a experiência. É preciso provar da rua, fazer dela uma matéria-prima para conhecer e reconhecer o mundo. Nesse sentido, talvez não exista plano de aula mais estimulante do que uma avenida, uma praça, um prédio velho, ainda que pichado, ou principalmente se pichado. A cidade – higienizada ou tomada de cicatrizes, não importa – é sempre um espelho, mirando as pessoas que nela vivem. Difícil admitir. Nem sempre gostamos do que vemos na “dura poesia concreta” das nossas esquinas, como bem disse a propósito Caetano Veloso.
O “devaneio” pela cidade, em miúdos, deveria ser uma rotina. Só quem se perde, ensinou Gaston Bachelard, desenvolve a capacidade de ver. Olgário Matos, filósofa da USP, estudiosa de questões urbanas, vai ainda mais longe: a cidade tem o dom da profecia. De repente, viramos uma esquina, e encontramos uma súbita revelação. Pode ser de uma memória de nosso passado. Uma epifania, expressa nos personagens urbanos. Quem se apressa, não prova.
Tanto quanto aprender a se perder, é preciso entender que somente os pés podem conter a maior das violências – a violência da velocidade. É ela que nos impede de ver. Estamos em disparada, usando das ruas como lugar de passagem, furtando-nos de prová-la, com a lentidão dos velhos que jogam dominó num passeio público. Parodiando outro pensador, o francês Dominique Wolton, só detém a velocidade aquele que fotografa com máquina analógica. Aquele que paira sobre cada imagem. Os digitais são papa-léguas ansiosos. Muito fazem. Nada veem.
De que serve toda essa conversa? Para que levemos nossos alunos para as ruas, sem medo, provocando-os a lerem as paisagens urbanas. Não é tempo jogado fora, a exemplo de todo e qualquer passeio que mereça este nome. É tempo.
>> José Carlos Fernandes é jornalista da Gazeta do Povo e professor do curso de Jornalismo da UFPR.
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