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De volta à cismogênese, quatro anos depois
| Foto: Microgen / Shutterstock

Em março de 2020, publiquei na minha coluna aqui na Gazeta um artigo intitulado “Cismogênese”. O título fazia referência a um conceito cunhado nos anos 1930 pelo antropólogo britânico Gregory Bateson em seu livro “Naven”, uma etnografia sobre o povo Iatmul, de Papua Nova Guiné. Inspirado na cibernética, Bateson criou o termo para explicar uma complexa dinâmica social manifesta no ritual que dá nome à obra.

Etimologicamente, “cismogênese” deriva da junção dos termos em grego para “ruptura” (skhisma) e “origem” (genesis), tendo por significado, portanto, algo como “origem da ruptura”. Bateson definiu cismogênese como “um processo de diferenciação nas normas do comportamento”, quer de indivíduos, quer de coletividades. Trata-se, dentro de um sistema qualquer, da interação entre elementos que reagem mutuamente ao comportamento umas das outras, de modo que, se um elemento A se comporta de maneira a induzir uma determinada reação no elemento B, essa reação afetará o comportamento posterior de A, que induzirá nova reação de B, e assim por diante. À medida que avança esse processo de retroalimentação, o resultado pode ser uma ruptura no sistema relacional em tela.

Bateson distinguiu dois tipos de cismogênese, a simétrica e a complementar. A cismogênese simétrica ocorre quando partes equivalentes reproduzem um mesmo comportamento, conferindo à interação o aspecto de uma rivalidade. Quando, por exemplo, dois torcedores de futebol começam a xingar-se mutuamente, o recrudescimento das ofensas por parte de um causará, em resposta, o recrudescimento das ofensas por parte do outro, e assim sucessivamente, até que, eventualmente, a disputa verbal resulte em vias de fato.

Já a cismogênese complementar se dá entre partes assimétricas numa determinada interação, de modo que o comportamento X de uma delas induza ao comportamento Y da outra, que levará a uma intensificação de X, logo a uma intensificação correspondente de Y, e daí por diante. Quando, por exemplo, um sujeito de personalidade impositiva interage com alguém de temperamento submisso, os comportamentos complementares de um e outro serão reforçados mutuamente. Isso até o ponto em que uma relação intersubjetiva saudável se torne inviável, transformando-se em submissão, no qual passa a haver uma pessoa-sujeito interagindo com uma pessoa-objeto.

Na época, recorri ao conceito de cismogênese complementar para descrever o que me parecia ser a forma de interação entre o povo brasileiro e a sua classe falante. Analisando os resultados de uma pesquisa, divulgada pela Fundação Perseu, sobre o aumento do conservadorismo da população, bem como a reação midiática a esses resultados, sugeri que o aumento do conservadorismo do povo conectava-se ao aumento complementar do progressismo por parte da intelligentsia, num processo cumulativo e cismogenético.

Impressionou-me a cegueira de jornalistas e comentaristas midiáticos, incapazes de notar que não observavam o fenômeno desde um ponto fixo de observação, mas de uma perspectiva móvel, em sentido político-ideológico contrário ao do observado

Escrevi: “Os nossos formadores de opinião ainda não descobriram uma coisa chamada movimento relativo. Quando olham para o aumento do conservadorismo do brasileiro, imaginam estar num ponto fixo de observação, sem perceber que também eles estão em movimento – no caso, em sentido contrário. Pois a verdade é que aquele aumento de conservadorismo só pode ser compreendido relativamente à intensificação do progressismo das nossas ‘elites’ culturais (...) A sensação de distância é intensificada pela soma dos vetores dos dois ‘corpos’ movendo-se em direções opostas – o povo, para um lado; a classe falante, para o outro”.

Eis que duas pesquisas recentes parecem confirmar a tendência por mim apontada. A primeira delas saiu pelo Ipec (ex-Ibope), e dá conta de uma maior adesão popular aos valores de direita. Como informa a matéria de Omar Godoy: “De acordo com o levantamento, 24% dos eleitores do país dizem ser de direita, enquanto menos da metade, 11%, posicionam-se à esquerda. Os dados ainda mostram que 20% são de centro, 25% de centro-direita e 11% de centro-esquerda (o restante dos entrevistados não sabe ou não respondeu). Ou seja: somando direita com centro-direita, é possível afirmar que 45% dos brasileiros simpatizam, para dizer o mínimo, com as teses direitistas”.

A outra pesquisa foi feita pelo Laboratório de Sociologia do Trabalho (Lastro) da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC, e buscou avaliar o perfil político apenas de jornalistas. O resultado foi o exato oposto ao da pesquisa do Ipec, mostrando que apenas 4% dos jornalistas brasileiros se identificam como de direita (incluindo aí as categorias direita, centro-direita e extrema-direita), enquanto mais de 80% se identificam como de esquerda (incluindo aí a esquerda, a centro-esquerda e a extrema-esquerda).

Para facilitar a visualização do leitor, reproduzo os gráficos feitos pelo jornalista Eli Vieira com base nos resultados das duas pesquisas:

Diante desses resultados, temo cada vez mais pela previsão do escritor francês Michel Houellebecq, a qual, por julgar sintetizar perfeitamente a situação brasileira, escolhi como epígrafe àquele artigo: “Eu percebi claramente, e fazia anos, que a distância crescente, agora abissal, entre a população e os que falavam em seu nome, políticos e jornalistas, devia necessariamente levar a algo caótico, violento e imprevisível”.

Conteúdo editado por:Aline Menezes
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