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O governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo)
O governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), tem sido atacado pela esquerda por declaração sobre consórcio de governadores do Sul e do Sudeste.| Foto: Josiane Gonçalves/Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais

“O moderno Príncipe [isto é, o partido comunista], desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, na medida em que o seu desenvolvimento significa de fato que cada ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, mas só na medida em que tem como ponto de referência o próprio moderno Príncipe e serve para acentuar o seu poder, ou contrastá-lo. O Príncipe toma o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico...” (Antonio Gramsci, Maquiavel, a política e o Estado moderno)

“Conquanto diferentes em origem, todas as ditaduras holísticas fiam-se em criar cumplicidade, ao passo que operam isolando e destruindo uma minoria escolhida, cujo estado aterrorizado confirma o desejo racional do resto de ser incluído e protegido.” (Richard Overy, The Dictators: Hitler’s Germany and Stalin’s Russia)

No último dia 5, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, o governador mineiro Romeu Zema (Novo) anunciou a criação de uma frente de estados do Sul e do Sudeste para defender no Congresso os interesses da região, a exemplo do que fizeram, em 2019, governadores do Nordeste. “Além do protagonismo econômico, porque representamos 70% da economia brasileira, nós queremos também protagonismo político” – disse Zema sobre a iniciativa de fortalecimento do Cosud (o Consórcio Sul-Sudeste).

Mas, ao contrário do que ocorrera em 2019 com o Consórcio Nordeste, noticiado pela imprensa com toda a naturalidade, dessa vez provocou escândalo a proposta análoga do governador de Minas. Devidamente amestrada pelo atual regime, com petiscos ideológicos e ração estatal publicitária, a imprensa autoproclamada “profissional” executou a pauta lulopetista e tratou de acusar Zema, um possível sucessor político de Jair Bolsonaro, de promover separatismo. De maneira maliciosa, o Estadão soou o apito de cachorro na própria escolha do título: “Zema anuncia frente Sul-Sudeste contra Nordeste e quer direita unida contra a esquerda”.

O governo aproveitou a janela de oportunidade para subir o tom contra Romeu Zema, preparando de antemão a aniquilação política do eventual futuro adversário e, se as circunstâncias ajudarem, a sua cassação ou até mesmo prisão

Missão dada, missão cumprida! Imediatamente, de maneira unânime e coordenada, decretou-se que o “bolsonarista” Zema fomentava o preconceito antinordestino e dividia o país. Para piorar – onde já se viu? –, o sujeito ainda tivera a ousadia de querer unir forças contra a esquerda. No Twitter (ou X), a blogueira tucana Vera Magalhães resmungou: “Frente do Sul e Sudeste CONTRA o Nordeste. Essa mentalidade só acirra o radicalismo que tem levado a sociedade brasileira a adoecer”. Em sua coluna no Estadão, a influencer esquerdista Giuliana Morrone exasperou-se: “Separatismo em 2023, Brasil?”. E assim marcharam disciplinados os soldados do agitprop governista, logrando êxito em chantagear, intimidar e coagir à opinião única até mesmo personagens outrora pertencentes ao campo antiesquerdista, muitos dos quais – a exemplo de João Amoêdo, Ronaldo Caiado e, nesse episódio, do próprio Jair Bolsonaro – sem a fibra necessária para peitar o “consórcio” da opinião autorizada e recusar tomar parte no linchamento político da vítima da vez.

Contemplando o bom trabalho realizado por seus apparatchiks na imprensa, e a debilidade do campo opositor na guerra de narrativas, o governo aproveitou a janela de oportunidade para subir o tom contra Zema, preparando de antemão a aniquilação política do eventual futuro adversário e, se as circunstâncias ajudarem, a sua cassação ou até mesmo prisão. A palavra de ordem oficial foi pronunciada pelo chefe da polícia política do regime, o comunista à frente do Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Sem qualquer resquício de rubor facial por condenar aquilo que ele mesmo fez no passado, na condição de um dos idealizadores do Consórcio Nordeste (junto com Rui Costa e Camilo Santana), Flávio Dino foi às redes sociais para decretar uma fatwa contra o governador mineiro: “É absurdo que a extrema-direita esteja fomentando divisões regionais. Precisamos do Brasil unido e forte. Está na Constituição, no art. 19, que é proibido ‘criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si’. Traidor da Constituição é traidor da Pátria, disse Ulysses Guimarães”.

Especulei acima que a personalidade mais stalinista que o país já teve à frente da pasta da Justiça e da Segurança Pública trabalha com afinco numa justificativa retórica para uma possível cassação ou mesmo prisão de Zema. E suspeitei-o ao tomar conhecimento do nome da mais recente operação da Polícia Federal que prendeu Silvinei Vasques, ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e – pelo menos por hoje – o mais recente preso político do Brasil. A operação que resultou na prisão de Vasques, e no cumprimento de mais dez mandados de busca e apreensão contra outros agentes da corporação, foi batizada de “Constituição Cidadã”, pelo motivo explicado no próprio site do Ministério da Justiça e da Segurança Pública:

“Os fatos investigados configuram, em tese, os crimes de prevaricação e violência política, previstos no Código Penal Brasileiro, e os crimes de impedir ou embaraçar o exercício do sufrágio e ocultar, sonegar, açambarcar ou recusar no dia da eleição o fornecimento, normalmente a todos, de utilidades, alimentação e meios de transporte, ou conceder exclusividade dos mesmos a determinado partido ou candidato, do Código Eleitoral Brasileiro. O nome da ‘Operação Constituição Cidadã’ é uma referência à Lei Maior do Brasil, promulgada em 1988, a qual, pela primeira vez na história do país, garantiu a todos os cidadãos o direito ao voto, maior representação da Democracia.”

Obviamente, a operação não foi batizada por acaso. Dias depois de acusar Zema abertamente de trair a Constituição, Flávio Dino tratava de comandar uma prisão política justificada precisamente por uma pretensa violação da Constituição por parte do investigado. Como se vê, os camaradas não dão ponto sem nó. O papel autoatribuído de guardiões da “Constituição Cidadã” serve ao governo do partido que à época se posicionou contrariamente a essa mesma Constituição de pretexto para o seu objetivo maior, tradição consagrada na cultura política à qual pertence: a “extirpação” total dos “animais selvagens” da oposição.

Quando falo da persona stalinista do ministro da Justiça, penso na espantosa semelhança entre o seu discurso de ódio contra Zema e uma pregação de Stalin, feita em 7 de novembro de 1937, por ocasião do 20.º aniversário do golpe bolchevique. Destinado a ser conhecido apenas pelos altos membros do partido e pela elite do Comissariado do Povo para Assuntos Internos (NKVD), o discurso é citado nos diários de Georgi Dimitrov, então líder da Comintern. Disse, sob aplausos efusivos, o camarada Stalin:

“Quem quer que tente destruir a unidade do Estado socialista, quem quer que procure a separação de qualquer de suas partes ou nacionalidades – esse homem é um inimigo, um inimigo jurado dos povos da URSS. E destruiremos cada um desses inimigos, mesmo se ele for um velho bolchevique; destruiremos todos os seus parentes, sua família. Destruiremos implacavelmente quem quer que, por seus atos e pensamentos – sim, seus pensamentos –, ameace a unidade do Estado socialista. Para a completa destruição de todos os inimigos, eles mesmos, e seus parentes!”

Afetando encarnar a unidade da pátria, a democracia e o bem comum, os camaradas petistas se permitem, assim como os bolcheviques, perseguir os adversários em bloco, reunidos em categoria

Note-se como, invariavelmente no caso dos comunistas, a justificativa para a violência política é sempre formulada em termos universalistas, grandiloquentes e carregados na tinta moralizante, como se se tratasse da proteção a um valioso patrimônio comum, e não, como de fato é, da defesa mesquinha e lasciva do projeto de poder particular do partido. Stalin falava o tempo todo de “unidade” (e, por incrível que pareça, também de fraternidade e paz), assim como hoje vociferam os representantes do lulopetismo. O truque é que, embora a moral comunista vise apenas ao bem do movimento revolucionário, os camaradas empregam estrategicamente o vocabulário da moral tradicional. O comunista ou filocomunista evoca sempre a “justiça”, a “igualdade”, a “liberdade”, a “democracia”, a “Constituição Cidadã”, e é por isso que, não raro, consegue atrair o homem comum de boa vontade, incapaz de atinar em tempo hábil para com o novo sentido revolucionário que a vanguarda partidária atribui a essas palavras. Como escreve Alain Besançon em A Infelicidade do Século:

“O fato assustador é que essa ruptura moral não é percebida por todos de fora desse meio revolucionário. De fato, para descrever a nova moral, o comunismo serve-se de palavras da velha moral: justiça, igualdade, liberdade... É fato que o mundo que ele se apressa a destruir está repleto de injustiça e de opressão. Os homens de bem não podem deixar de aceitar que os comunistas denunciem esses males com extremo vigor (...) Finalmente, todas as palavras que servem para expressar as modalidades do bem – justiça, liberdade, humanidade, bondade, generosidade, realização – são instrumentalizadas em vista do fim único, que contém todas elas e as realiza: o comunismo. Do ponto de vista da ideia comunista, essas palavras mantêm com as antigas apenas uma relação de homonímia”.

A esquerda revolucionária sempre foi especialista na arte de simular virtude. O vigor espalhafatoso com que esquerdistas denunciam injustiças, a ostensiva indignação diante dos males do mundo e aquela “apaixonada intensidade” (sensu W. B. Yeats) de seu discurso acusatório são parte essencial da persona revolucionária (ou, no vocabulário contemporâneo, “progressista”), e causam profunda impressão no espírito dos homens de bem. Crédulos, como mostrou Eric Voegelin, eles confiam que só mesmo sujeitos singularmente virtuosos poderiam escandalizar-se tanto com o mal. “De modo a avançar a sua ‘causa’, o homem que a sustenta irá, diante da multidão, entregar-se a uma crítica severa dos males sociais e, em particular, da conduta das classes altas” – escreve o filósofo alemão em A Nova Ciência da Política. “A repetição constante da performance induzirá entre os ouvintes a opinião de que ele deve ser alguém de singular integridade, zelo e santidade, pois apenas homens singularmente bons seriam capazes de se ofender tão profundamente com o mal.”

Os horrores que definiram os regimes comunistas no século passado – e que se prolongam no presente século a despeito do fim nominal do comunismo – foram possíveis por causa dessa inversão revolucionária da moral. Como resume Richard Overy: “Os oficiais da NKVD na União Soviética eram premiados com a medalha do Herói Soviético pelos infindáveis sofrimentos causados em suas vítimas. O universo moral da ditadura tornou os crimes do Estado explicáveis não como crimes, mas como precauções necessárias à prevenção de uma injustiça maior”. Ou como admitiu Viatcheslav Molotov, carrasco de Stalin durante o Grande Terror: “É claro que houve excessos, mas tudo era admissível, do meu ponto de vista, por causa do objetivo principal – manter o poder de Estado (...) Nossos erros, incluindo os erros cruéis, eram justificados”.

Como representante brasileiro dessa tradição comunista-revolucionária, o PT e sua rede de colaboradores formais e informais têm sido exímios em manipular a fé pública para subverter todos os critérios de juízo racional e todos os princípios morais socialmente consagrados, reduzindo-os, tal como propusera Antonio Gramsci, à razão do partido. Daí que, afetando encarnar a unidade da pátria, a democracia e o bem comum, os camaradas petistas se permitam, assim como os bolcheviques, perseguir os adversários em bloco, reunidos em categoria. Pouco importa o que tenham feito de concreto, se cometeram ou não algum crime tipificado em lei, o importante é condená-los e aniquilá-los coletivamente por aquilo que são. Como explicou em 1918 Martin Latsis, um dos líderes da Cheka, a primeira polícia política bolchevique: “Não estamos fazendo guerra contra pessoas individuais. Estamos exterminando a burguesia como classe. Durante a investigação, não procuramos provas de que o acusado agiu em atos ou palavras contra o poder soviético. As primeiras perguntas que tens de fazer são: a que classe pertence ele? Qual é sua origem? Qual é sua educação e profissão? E são estas perguntas que devem determinar a sorte do acusado” (citado por Robert Gellately).

Substitua “burguesia” por “bolsonarismo” ou algum termo equivalente, suficientemente elástico, e teremos uma imagem do que se passa no Brasil em 2023, sob o regime lulopetista.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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