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A escritora Ayaan Hirsi Ali, que em novembro de 2023 anunciou sua conversão ao cristianismo.
A escritora Ayaan Hirsi Ali, que em novembro de 2023 anunciou sua conversão ao cristianismo.| Foto: American Atheists/Creative Commons Attribution 3.0 Unported license/Wikimedia Commons

Ayaan Hirsi Ali, autora de livros fortemente críticos ao islamismo, como A virgem na jaula: um apelo à razão, Infiel: a história da mulher que desafiou o islã e Herege: por que o islã precisa de uma reforma imediata, publicou em novembro desse ano o artigo “Por que eu sou agora uma cristã”, no site britânico UnHerd (uma tradução para o português está disponível no site Pleno.News), no qual afirma ter se convertido à fé cristã e defende que o cristianismo é a única solução viável para enfrentar os desafios sociais do mundo pós-moderno.

Uma trajetória impressionante

Hirsi Ali nasceu em 1969, em Mogadíscio, na Somália, onde sofreu mutilação sexual, com 5 anos. Depois se mudou para a Arábia Saudita e a Somália, até fixar residência em Nairobi, no Quênia, em 1980. Na adolescência, tornou-se uma extremista religiosa depois de conhecer a Irmandade Muçulmana. Foi com este grupo que ela aprendeu a odiar os “infiéis” (ou seja, todos aqueles que não seguem o islamismo) e, principalmente, os judeus. Hirsi Ali pediu e obteve asilo político na Holanda, em 1992, onde se refugiou fugindo de um casamento arranjado. Lá estudou Ciências Políticas na Universidade de Leiden. Em 2003 foi eleita membro da Câmara dos Representantes, a câmara baixa do parlamento holandês, representando o Partido Popular para a Liberdade e Democracia (VVD), um dos três maiores partidos da Holanda.

Mas, de acordo com Hirsi Ali, tudo mudou após o atentado de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, quando ela passou a discordar do islamismo, abraçando o secularismo e o feminismo, e se identificando como ateísta. Em 2004, ela escreveu o roteiro do filme de Theo Van Gogh Submission, que retratava a opressão das mulheres sob a lei islâmica. Por causa do filme, ela recebeu ameaças de morte e Van Gogh foi assassinado por um terrorista islâmico. Em 2005, Hirsi Ali foi nomeada pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. Também foi jurada de morte por imãs islâmicos, e por isso até hoje vive cercada de seguranças, pagos por doações privadas.

Em 2013 ela se tornou cidadã naturalizada dos Estados Unidos. Em 2014, a Brandeis University, em Massachusetts, cancelou a concessão de título honorário para Hirsi Ali, capitulando às pressões de estudantes muçulmanos, que a rotularam como “famosa islamofóbica” e “uma das piores dos piores inimigos do Islã na América, não só na América, mas em todo o mundo”. Em 2017, ela cancelou, por razões de segurança, uma turnê de palestras na Austrália e Nova Zelândia, após ser acusada por mulheres muçulmanas residentes na Austrália de ser a “estrela da indústria global da islamofobia”. Atualmente, é pesquisadora do Instituto Hoover da Universidade de Stanford, serve no American Enterprise Institute, e é associada sênior no Future of Democracy Project, da Harvard Kennedy School.

Hirsi Ali relata que a característica mais marcante em seu tempo na Irmandade Muçulmana foi a capacidade de transformar rapidamente adolescentes que eram apenas crentes passivos em ativistas

Na Irmandade Muçulmana

Em “Por que eu sou agora uma cristã”, Hirsi Ali diz que abandonou o feminismo e o ateísmo para abraçar a fé cristã. Ela esteva muito envolvida com a Irmandade Muçulmana desde a sua adolescência. Ela relata que a característica mais marcante em seu tempo na Irmandade Muçulmana foi a capacidade de transformar rapidamente adolescentes que eram apenas crentes passivos em ativistas, inclusive instando os não muçulmanos a aderirem ao islã. Eles eram lembrados das instruções do Profeta, vez após vez, e foram forte e claramente instruídos a odiar e amaldiçoar todos que rejeitassem o apelo que faziam ao Islã, bem como a nem sequer manter amizade com quem não fosse leal a Alá e Maomé. E essa animosidade piorava muito em relação aos judeus: “Aqui, um ódio especial foi reservado a um subconjunto de incrédulos: os judeus. Amaldiçoamos os judeus várias vezes ao dia e expressamos horror, repulsa e raiva pela litania de ofensas que eles supostamente cometeram. Os judeus traíram nosso Profeta. Eles ocuparam a Mesquita Sagrada em Jerusalém. Eles continuaram a espalhar a corrupção do coração, da mente e da alma”.

Depois de receber uma educação religiosa tão rígida durante anos, Hirsi Ali passou, a partir do ataque terrorista às Torres Gêmeas em Nova York, em 11 de setembro de 2001, a ser atraída pelo ateísmo, que oferecia uma forma de fugir da vida insuportável que ela vivia. Assim, como ateia, ela teve a ilusão de que perderia o medo que sempre sentia na Irmandade Muçulmana, substituindo-o pelo conhecimento adquirido através de seus contatos com Christopher Hitchens e Richard Dawkins. Mas isso não aconteceu e ela acabou se convertendo ao cristianismo. Por que e como isso veio a acontecer?

A guerra cultural no ocidente

Ao falar dessa decisão de aderir à fé cristã, Hirsi Ali cita como motivação inicial a percepção da presença de três ameaças maiores à civilização ocidental: “A civilização ocidental está sob a ameaça de três forças diferentes, mas relacionadas: o ressurgimento do autoritarismo e do expansionismo das grandes potências sob as formas do Partido Comunista Chinês e da Rússia de Vladimir Putin; a ascensão do islamismo global, que ameaça mobilizar uma vasta população [árabe e iraniana] contra o Ocidente; e a propagação viral da ideologia woke, que está a corroer a fibra moral da próxima geração”. E ela, perceptivelmente, nota as limitações com as quais essas ideologias estão sendo combatidas: “Esforçamo-nos por afastar estas ameaças com ferramentas modernas e seculares: esforços militares, econômicos, diplomáticos e tecnológicos para derrotar, subornar, persuadir, apaziguar ou vigiar. E, no entanto, a cada rodada de conflito, perdemos terreno”. Ou seja, o ocidente não apenas não está conseguindo fazer frente à guerra cultural, mas está sendo lentamente derrotado.

Para Hirsi Ali, essas três forças só podem ser vencidas com sucesso pela redescoberta do legado da tradição judaico-cristã: “Não podemos combater estas forças formidáveis a menos que possamos responder à pergunta: o que é que nos une? A resposta de que ‘Deus está morto!’ parece insuficiente. O mesmo acontece com a tentativa de encontrar consolo na ‘ordem internacional liberal [...]’. A única resposta crível, creio eu, reside no nosso desejo de defender o legado da tradição judaico-cristã.” Como ela escreve: “Esse legado consiste num conjunto elaborado de ideias e instituições concebidas para salvaguardar a vida, a liberdade e a dignidade humanas – desde o Estado-nação e o Estado de Direito até as instituições de ciência, saúde e aprendizagem. Como Tom Holland mostrou no seu maravilhoso livro Domínio, todos os tipos de liberdades aparentemente seculares – do mercado, da consciência e da imprensa – encontram as suas raízes no cristianismo. [...] Para mim, esta liberdade de consciência e de expressão é talvez o maior benefício da civilização ocidental. [...] É o produto de séculos de debate nas comunidades judaica e cristã”.

“Por que eu sou agora uma cristã?”

Mas Hirsi Ali cuidadosamente deixa claro que ela não está aderindo a um “cristianismo cultural” nem intenta ser uma “ateísta cristã”. Estas são noções em voga no atual universo intelectual europeu, e dois dos principais aderentes destas ideias são o cientista britânico Richard Dawkins e Douglas Murray, comentarista político britânico. Ou seja, “cristãos culturais” são pessoas não religiosas que aderem aos valores cristãos, apreciam a cultura cristã e se identificam como “cristãos nominais”, por causa dos valores civilizatórios associados ao cristianismo. Mas Hirsi Ali deixa claro que sua adesão ao cristianismo se deveu não “apenas à compreensão de que o ateísmo é uma doutrina demasiado fraca e divisiva para nos fortalecer contra os nossos inimigos ameaçadores. Também me voltei para o cristianismo porque, em última análise, achei a vida, sem qualquer consolo espiritual, insuportável – na verdade, quase autodestrutiva. O ateísmo não conseguiu responder a uma pergunta simples: qual é o significado e o propósito da vida?” Como ela destaca: “O ‘buraco de Deus’ – o vazio deixado pelo recuo da Igreja – foi meramente preenchido por uma confusão de dogmas irracionais e quase religiosos. O resultado é um mundo onde os cultos modernos” oferecem muitas “razões espúrias para ser e agir – principalmente através do envolvimento no teatro de sinalização de virtude”, como na ideologia woke. Por isso, de acordo com ela, “a frase frequentemente atribuída a G. K. Chesterton transformou-se numa profecia: ‘Quando um homem deixa de acreditar em Deus, ele não passa a acreditar em nada – passa a acreditar em qualquer coisa’”.

Hirsi Ali afirma que nem o Islã nem o ateísmo trouxeram-lhe respostas para os dilemas sociais que só o cristianismo pode resolver: “Neste vácuo niilista, o desafio que temos diante de nós torna-se civilizacional. Não poderemos resistir à China, à Rússia e ao Irã se não conseguirmos explicar às nossas populações por que é importante que o façamos. Não podemos combater a ideologia woke se não pudermos defender a civilização que ela está determinada a destruir. E não podemos combater o islamismo com ferramentas puramente seculares. Para conquistar os corações e mentes dos muçulmanos aqui no ocidente, temos de lhes oferecer algo mais do que vídeos no TikTok”. Mas, como ela afirma, “felizmente, não há necessidade de procurar”. Pois, como ela continua, “o cristianismo tem tudo” que é necessário para satisfazer o anseio de paz e significado que todo ser humano tem, e para construir uma civilização e cultura significativas.

Se os esquerdistas fossem coerentes, ouviriam Ayaan Hirsi Ali, vítima de abusos, perseguida, mas vencedora. Entretanto, vão preferir ignorá-la

Ela conclui, com humildade comovente: “Ainda tenho muito que aprender sobre o cristianismo. Descubro um pouco mais na igreja todos os domingos. Mas reconheci, na minha longa jornada através de um deserto de medo e de dúvidas, que existe uma maneira melhor de gerir os desafios da existência do que o Islã ou a descrença tinham para oferecer”.

Uma voz digna de ser ouvida

Hirsi Ali é casada desde 2011 com Niall Ferguson, com quem tem dois filhos. Ferguson é um dos maiores historiadores da atualidade, associado sênior no Instituto Hoover e na Universidade de Harvard. No passado foi pesquisador no Jesus College, da Universidade de Oxford, professor na Escola de Economia de Londres e na Universidade de New York, e professor visitante no New College of the Humanities, em Londres. Ele escreveu e apresentou numerosas séries de documentários de televisão, incluindo The Ascent of Money, que ganhou um prêmio Emmy de Melhor Documentário em 2009. É autor de obras de referência importantíssimas, tais como Império: como os britânicos fizeram o mundo moderno, Civilização: ocidente x oriente, O horror da guerra: uma provocativa análise da Primeira Guerra Mundial, e Kissinger 1923-1968: o idealista, que está no prelo. Em 2004, ele foi escolhido como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time.

Se os esquerdistas fossem coerentes, ouviriam Ayaan Hirsi Ali, “provavelmente a intelectual pública mais importante que surgiu na África”, de acordo com Christopher Hitchens, vítima de abusos, perseguida, mas vencedora. Entretanto, vão preferir ignorá-la, pois preferem chafurdar cada vez mais fundo no pântano espiritual e moral em que estão atolados.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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