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Reportagem da revista Veja ridicularizou famílias católicas com muitos filhos.
Reportagem da revista Veja ridicularizou famílias católicas com muitos filhos.| Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney

Sexta-feira passada, 1.º de setembro, o mundo cristão celebrou o início da Estação Litúrgica da Criação. Esse período do calendário cristão é uma inovação recente, resultado da preocupação com a crise ambiental e o cuidado da criação divina. A ideia começou na Igreja Ortodoxa oriental, sendo assumida pelo Concílio Mundial de Igrejas em 2007, quando se definiram seus limites no calendário: 1.º de setembro a 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis. Hoje a festa é celebrada por ortodoxos orientais, católicos romanos, anglicanos e reformados. A Igreja Esperança, em Belo Horizonte, celebra o tempo da criação desde 2020.

Pois foi exatamente no dia 1.º de setembro que a revista Veja publicou um insulto à cosmovisão cristã, quero crer, involuntário (mas não menos culpável): uma reclamação quanto à “multiplicação de bebês”.

Sim, é isso mesmo que você leu: a multiplicação de “bebês de casais da ala conservadora da Igreja Católica” está deixando algumas pessoas preocupadas. Em vez de se preocuparem com as baixas taxas de natalidade no Brasil, reveladas pelo último censo do IBGE, que anunciam uma enorme crise social e econômica no horizonte; ou de se preocuparem com a falta de proteção e de incentivos governamentais para as famílias; ou com o completo desprezo pela presença paterna em nossa sociedade, a nossa elite cosmopolita está incomodada com a multiplicação de bebês católicos.

A paternidade, a maternidade, o casamento, a geração de filhos e a família são temas da doutrina cristã da Criação, como fica muito claro em Gênesis 1 e 2, na Doutrina Social da Igreja Católica e no ensino moral de todas as tradições cristãs

É um insulto, porque a paternidade, a maternidade, o casamento, a geração de filhos e a família são temas da doutrina cristã da Criação, como fica muito claro em Gênesis 1 e 2, na Doutrina Social da Igreja Católica e no ensino moral de todas as tradições cristãs. Para nós, o tempo da criação não é só o tempo de celebrar a conservação ambiental.

A matéria começa relembrando o avanço civilizatório de uma maior presença feminina na sociedade. Nos termos da jornalista, Sofia Cerqueira, esse avanço se constituiu, basicamente, de mais mulheres no mercado de trabalho e livres para ter relações sexuais sem medo de ter filhos. “Conforme o mundo gira, a população feminina registra cada vez menos crianças, uma opção que vem sacudindo as placas tectônicas da demografia e trazendo ao mundo o desafio de se repensar com menos bebês”.

É isso: menos bebês, mais liberdade para as mulheres. O problema é esse excesso de bebês.

Quem poderia ser contra berçários menores? Gente que não bate bem da cabeça, por certo. A reportagem esclarece que são pessoas de classe média e alta, católicas, que “abraçam irrestritamente a doutrina cristã” – ou seja, cristãos de verdade – e que rejeitam métodos contraceptivos, vangloriando-se na internet por seus feitos reprodutivos, enchendo perfis conservadores com aquelas fileiras de crianças – que pouca vergonha!

Aí a jornalista dá o passo previsível de enquadrar essa vontade louca de “crescer e multiplicar” nos movimentos de “radicais católicos”, desembocando em outras “pautas da direita”. Não deixa de ser verdade; mas isso é um problema da esquerda e da jornalista, não da direita. Parece que, em algumas mentes, tudo o que uma pessoa “errada” faz é errado, mesmo que sejam bebês.

Por fim, o artigo ainda alega que esses católicos prolíficos, por recusar os métodos anticoncepcionais e apostar em famílias grandes, são pessoas para as quais “não cabe debate”. Pareceu-me o ponto mais baixo do artigo: a levar a sério sua linha de raciocínio, ter uma posição firme contra o secularismo é recusar o debate. Certamente recusar todo debate é ruim para a vida intelectual e social, mas debate não significa suspender o julgamento e manter-se na indecisão. Mas já sabemos como isso funciona hoje: doutrinas religiosas devem ser “debatidas” (flexibilizadas) e os valores seculares devem ser assumidos (pois o mundo “girou”).

O pecado original por trás dessa filharada é corretamente identificado pela articulista: a encíclica Humanae Vitae, de Paulo VI (1968), quando a Igreja se meteu a interferir no processo civilizatório e regular a natalidade. Ao menos, o papa Francisco estaria disposto a rediscutir a questão – essa parece ser a esperança da jornalista, que espera ver o assunto ser trazido à luz “sem tantos tabus”.

Segundo Abigail Favale, muita mulher “moderna” tem vergonha e raiva de sua biologia, e tenta participar do mundo dos homens suprimindo-a ao máximo, com direitos, medicina e remédios

“Tabus”! Surpreende que alguém ainda use essa palavra para falar de controle de natalidade. Ela se aplicaria melhor à exaltação da maternidade em pleno século 21 – isso, sim, é um grande tabu aos olhos dessa religião laica que é o individualismo expressivo. Esclareço: à época da revolução sexual, muitos temas de sexualidade humana eram tabus para pessoas conservadoras e religiosas; mas as coisas já se inverteram há bastante tempo. Não existem mais tabus sexuais; para o indivíduo contemporâneo, tabu é o que mexe com sua individualidade; é o que questiona – e revela – a infelicidade do Self moderno, e a inviabilidade do modo de existência epicurista, atomizado e antinatural que ele tenta constituir para si.

Em poucas áreas isso fica mais evidente do que no tocante à mulher. Como Abigail Favale mostra muito bem em seu genial Genesis of Gender (A gênese do gênero, publicado pela Quadrante em 2023), o feminismo realizou o feito de separar a feminilidade da biologia feminina e da maternidade – o útero –, transformando o feminino numa performance que qualquer um pode assumir. A sua conclusão, que me parece muito bem argumentada e incontornável, é que muita mulher “moderna” tem vergonha e raiva de sua biologia, e tenta participar do mundo dos homens suprimindo-a ao máximo, com direitos, medicina e remédios.

E nada lembra essa sorte de mulher “moderna” mais rapidamente disso do que uma mãe cristã com uma enorme fieira de filhos atrás. Que horror!

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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