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Um Cristo sexualizado?
| Foto: Divulgação

Sevilha, na Espanha, está sendo cenário de uma controvérsia envolvendo a imagem de Jesus Cristo. Como acontece todos os anos, o órgão municipal encarregado da regulamentação das procissões da Semana Santa, apresentou, na semana passada, o cartaz oficial do evento religioso de 2024: uma pintura, digamos assim, incomum de Jesus Cristo, de autoria do artista plástico Salustiano García.

Cartazes com a imagem abaixo já estão sendo distribuídos por toda a cidade, em igrejas, lojas e cafés – além, é claro, das redes sociais. Na opinião de muitos fiéis espanhóis, trata-se da representação de um Cristo sexualizado, andrógino, e com traços efeminados.

Não vou dar minha opinião, estou apenas registrando os fatos. Que o leitor tire suas conclusões. (Por outro lado, alguém poderia perguntar: por que um Cristo magro, que reforça estereótipos gordofóbicos? Vou parar por aqui.)

E um fato é que o cartaz está provocando indignação: um abaixo-assinado para o cancelamento imediato da campanha, percebida como blasfema, já recolheu quase 10 mil assinaturas.

O texto do abaixo-assinado diz: “Solicitamos a retirada imediata do cartaz da Semana Santa de Sevilha 2024, pois não representa de forma alguma a fé, os valores cristãos, a tradição e o fervor religioso desta cidade.”

A indignação já está se espalhando por outras cidades, como Málaga, onde foi marcada uma missa de desagravo contra uma representação de Cristo percebida como desrespeitosa.

Em entrevista, o artista se defendeu: “O que me surpreendeu em toda esta polêmica é a politização de uma obra de arte, dizendo que pertence a este ou aquele partido, ou a esta ou aquela tendência sexual. Como se minha pintura fosse de esquerda. É algo absurdo, bobo. Para enxergar sexualidade no meu Cristo é preciso estar doente”.

Será mesmo? Não encontrei nenhuma crítica que politizasse a obra associando-a à esquerda. Desviar a polêmica para este lado, portanto, é apenas desonestidade intelectual. Este é o primeiro truque.

Em todo caso, fui atrás de outras obras de Salustiano, e achei coisas bem estranhas. Por exemplo, as pinturas abaixo, que retratam crianças fumando, com um facão nas mãos ou com um olhar desafiador de psicopata, mas com o gesto de quem reza.

Três pinturas do artista espanhol Salustiano García
Três pinturas do artista espanhol Salustiano García

Também é preciso estar doente para achar estranha essa representação da infância?

Resumindo: Salustiano García é um artista que faz uso deliberadamente polêmico da infância ou de símbolos religiosos para “épater”, para chamar a atenção. Quando, inevitavelmente, alguém protesta, é porque não entendeu a obra – ou, pior ainda, é um pervertido.

No caso em questão, Salustiano está basicamente chamando de pervertidas  as pessoas comuns que protestam por julgarem inapropriada a forma como Jesus foi representado. Acuse-os do que você faz, chame-os do que você é.

Mas o que vale a opinião de milhares de pessoas comuns diante da liberdade do artista? Essas pessoas que veem a sexualização de Cristo no cartaz são apenas doentes e burras. Inteligente e moralmente saudável é Salustiano.

Um artista faz uso deliberadamente polêmico da infância ou de símbolos religiosos para chamar a atenção. Quando, inevitavelmente, alguém protesta, é porque não entendeu a obra

Este é o segundo truque, igualmente manjado. Para só citar um exemplo, algo parecido aconteceu no Brasil, quando, em 2017, o Museu de Arte Moderna de São Paulo abrigou de uma performance na qual um artista plástico completamente nu interagiu fisicamente com uma criança – para deleite de uma plateia de adultos vestidos.

Imagens da performance viralizaram. Mas, diante da revolta espontânea e generalizada que tomou conta das redes, a reação da maioria dos artistas e intelectuais – e da grande mídia – foi tentar desqualificar como “moralistas” e “ignorantes” as pessoas comuns que se indignaram com a exposição de uma criança ao contato físico com um adulto nu.

Na época,  um jornalista amigo meu me chamou de conservador, como se isto fosse uma ofensa. Lembro que respondi: “Continuem mexendo com crianças, e Bolsonaro será eleito presidente”. Isto mais de um ano antes da eleição de 2018, quando a hipótese parecia completamente absurda. Não deu outra.

Mexer com Cristo também não parece uma boa ideia a curto prazo, pode-se pensar. Mas a verdade é que os ataques não vão parar, porque parecem fazer parte de um projeto paciente e deliberado de destruição de todos os valores relacionados à tradição cristã.

O projeto de guerra cultural é de longo prazo e já vem sendo implementado há décadas. Eles não têm pressa, podem se dar ao luxo de perder muitas batalhas.

Anos atrás, aliás, publiquei um livro sobre os descaminhos das artes plásticas – A grande feira: Uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea – no qual analisei com mais detalhamento essas táticas de guerrilha cultural, que ao mesmo tempo atacam os valores das pessoas comuns e desqualificam estas mesmas pessoas como seres inferiores, incapazes, fascistas.

Uma das obras que analisei no livro foi Piss Christ, do artista e fotógrafo americano Andres Serrano. A “obra” mostra um crucifixo submerso na urina do artista.

"Piss Christ", obra do artista Andres Serrano
"Piss Christ", obra do artista Andres Serrano

“Piss Christ” ganhou vários prêmios, incluindo uma bolsa patrocinada pelo National Endowement for the Arts, o  órgão do Governo americano que investe dinheiro público no fomento a artistas.

Diante da polêmica previsível, o artista reagiu: "Não tinha ideia de que ‘Piss Christ’ iria receber a atenção que chamou, já que não quis blasfemar nem ofender com isso.”

Imagina, claro que ele não quis ofender. O que tem de mais mergulhar Cristo em urina, fotografar e vender como arte? Os cristãos que se sentiram ofendidos é que são burros, fascistas, moralistas e não têm capacidade de compreender a profundidade da obra – que aliás foi vendida em um leilão da Christie’s por US$ 277 mil, em 2008.

Voltando a Sevilha: trata-se de uma cidade onde o catolicismo ainda está profundamente enraizado. O Instituto de Política Social, entidade católica local, classificou o cartaz como "uma verdadeira vergonha e aberração", por retratar um Cristo com características "efeminadas".

A entidade solicitou a retirada da obra e exigiu um pedido público de desculpas do artista, argumentando que essa representação não está de acordo com o espírito da Semana Santa.

Um líder do partido Vox se uniu às críticas, declarando no “X-antigo Twitter” que o cartaz "procurava a provocação" e se afastava de seu propósito original de "encorajar a participação devota dos fiéis na Semana Santa de Sevilha". Coisa da "ultradireita", dirá a grande mídia esclarecida.

Já o líder do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) da Andaluzia, para surpresa de ninguém, defendeu o cartaz e denunciou "as expressões de homofobia e ódio" que surgiram em resposta à obra. Este é o terceiro truque: reduzir qualquer crítica a um preconceito e estigmatizar quem critica.

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