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Detalhe da pintura de Edvard Munch “O Grito” (1893).
Detalhe da pintura de Edvard Munch “O Grito” (1893).| Foto: Reprodução

Grande parte das casas editoriais no Brasil são aparelhos ideológicos. Existem as chiques de esquerda que só publicam os golden boys e as golden girls. Existem aquelas que só publicam mulheres ou outras identidades militantes.

Existem as que recusam figuras dúbias do ponto de vista da pureza conservadora. Existem as business-oriented que buscam apenas publicar quem vende, mesmo que a figura seja totalmente inconsistente – basta que ela tenha um bom engajamento nas redes. Existem, claro, exceções. Esse mapa impede que autores importantes sejam publicados aqui. Há um verdadeiro ponto cego editorial.

A mania das identidades é fruto do fato de que as pessoas são um nada. Nada fazem de significativo.

Um dos autores mais lidos na França hoje é o visconde Olivier de Kersauson de Pennendreff, marinheiro e velejador. Politicamente, ele é inclassificável, o que já atrapalha diante da miopia que a hiperpolitização do mundo nos causa. Apesar de muito lido, Kersauson não tem nada a ver com literatura motivacional, autoajuda, coaching ou qualquer picaretagem do tipo "foguete não anda de ré".

O autor carrega em si a tradição francesa que reúne figuras como Pascal, Montaigne, Bossuet, La Bruyère, La Rochefoucauld – todos do século 16 ou 17 – e mesmo Cioran, do século 20. Trata-se da tradição moralista francesa, caracterizada pela análise fina da natureza humana, essa mesma que dizem que não existe, apesar de ela se espraiar pela psicologia, política, sociologia, para quem não tem o hábito de mentir. Nosso cotidiano de trabalho, familiar, amoroso, é afogado em natureza humana.

Por ser um autor contemporâneo – Kersauson tem hoje 78 anos – sua escrita traz elementos absolutamente atuais. O senso histórico nele é agudo. Não se trata de um nostálgico, apesar de reconhecer que escolheu uma profissão arcaica – marinheiro – e ter vivido mais tempo entre as estrelas e o mar. Reconhece que aos 78 anos já se trata de uma pessoa irrelevante para o mundo, que, segundo ele, deve ser tocado por pessoas de 20 anos, as únicas que transitam pelo circo das aparências eletrônicas à qual a vida foi reduzida – termos dele.

Quer conhecer a natureza de um revolucionário? Veja como ele se apraz em matar.

Como todo moralista, escreve textos curtos e de fácil entendimento. O que importa, o que ele chama de "potência da verdade", está no detalhe. Aliás, o título do seu último livro, lançado agora em janeiro, é Veritas Tantam Potentiam Habet ut Non Subverti Possit, em latim mesmo, que significa "a verdade tem uma tal potência que ela não pode ser aniquilada". O autor é conhecido por títulos peculiares.

Kersauson percebe como o mundo se tornou mediocremente igual – palavra, que aliás, detesta. Viajar, um dos seus temas prediletos, afinal, ele sempre foi um marinheiro, virou algo banal. Em Palermo, pede-se hambúrguer, em Paris, pizza. Nada mais é diferente, apesar de toda a masturbação mental sobre "a diferença". Traço este que é fruto do sucesso da estupidez capitalista.

Aliás, a mania das identidades é fruto do fato de que as pessoas são um nada. Nada fazem de significativo. A militância pelas identidades não é signo de "progresso", mas de miséria psicológica e social. O paladar das crianças foi destruído porque não existe mais cozinha materna. Apesar de todo o blablablá sobre maternidade, a função está em extinção porque é considerada menor.

Desde 1968, ninguém mais quer educar criança nenhuma. Educar uma criança, ao contrário do que as diatribes modernas pregam, é ensiná-los a comer à mesa, respeitar os mais velhos, não interromper quando outras pessoas estão falando, tomar banho, arrumar suas coisas. Desde 1968 impera uma total irresponsabilidade, preguiça e modismos no terreno da educação escolar e familiar.

Kersauson critica a mística que seus contemporâneos atribuíram à Revolução de 1789, que, para ele, revelou sua verdadeira natureza nos massacres perpetrados em nome dela. Quer conhecer a natureza de um revolucionário? Veja como ele se apraz em matar. Com isso, ele derruba toda a mística política dos últimos dois séculos.

Ao final, é a impotência que nos arrasa desde sempre. A verdade fundamental da natureza humana é o terror. E, contra a verdade, não se pode nada.

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