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Detalhe de retrato de Charles Darwin pintado por John Collier em 1883.
O naturalista inglês Charles Darwin, apesar de defender que era possível crer em Deus e aceitar a evolução das espécies, tinha reservas quanto à ética cristã.| Foto:

Sendo editor de Opinião da Gazeta do Povo, uma das minhas tarefas é a de editar e preparar para publicação os textos de vários dos nossos colunistas. E foi com especial interesse e curiosidade que editei, em fevereiro e março, uma série de oito colunas do Flávio Gordon sobre o desmanche, na sociedade moderna, da lógica cristã de compaixão pelo mais fraco, substituída pelo utilitarismo eugenista. Dois desses textos me chamaram especialmente a atenção: um sobre o famoso “Julgamento do Macaco” e outro em que o colunista volta a falar da “metafísica implícita” da teoria da evolução, um termo que Gordon já havia usado em outra ocasião, e que eu também cheguei a comentar. Na coluna mais recente, Gordon traz novos elementos para a discussão, tirados dos escritos do próprio Charles Darwin, e que me forçam a repensar um pouco os meus próprios conceitos.

Mas, antes, um esclarecimento necessário: aqui, chamarei sempre de “evolução” ou “teoria da evolução” aquilo que tem o caráter descritivo, ou seja, como Darwin explicou a variedade de formas de vida na Terra. Já “darwinismo” vai designar tudo o que vai além da explicação, seja aquilo que tem o caráter prescritivo (no sentido de “como as coisas deveriam ser”, por exemplo a eugenia ou o laissez-faire econômico da “sobrevivência do mais apto”), sejam as conclusões não científicas do tipo “Deus não existe” ou “o universo não tem propósito algum”.

O ponto de Gordon, e que ele exemplifica com textos de A origem do homem e a seleção sexual e outros escritos de Darwin, é que o darwinismo não é um “sequestro posterior” da teoria, feito por gente que não entendeu Darwin, não quis entender Darwin ou quis usar Darwin para promover agendas próprias; o darwinismo surgiu já com Darwin, e misturado à teoria da evolução. “A teoria da evolução das espécies é, possivelmente, um híbrido de ciência e política desde a origem. A pureza que lhe atribuíram Stephen Jay Gould e outros evolucionistas é uma abstração posterior, uma criação ideológica ex post facto”, afirma Gordon. Ele acrescenta que, “apesar dos méritos científicos inegáveis, a consagração da teoria deu-se menos por esse motivo do que pela atração exercida por sua metafísica implícita, a qual, negando o sentido transcendente da vida humana, opunha-se essencialmente à cosmovisão judaico-cristã”, e volta a citar textos de Darwin que apontam nesta direção.

Se o próprio Darwin misturou uma explicação que tem “méritos científicos inegáveis” com concepções éticas ou religiosas questionáveis, problema dele. Vamos manter e promover a parte boa, a da ciência, e descartar o resto

Em outras palavras, não é que a descrição científica da evolução das espécies caísse como uma luva nas opiniões racistas e ateístas de outras pessoas, que se entusiasmaram com a evolução por ganhar uma “base científica” para defender o que defendiam; o próprio Darwin também compartilharia dessas visões e evidenciaria algumas delas em escritos posteriores a A origem das espécies, ainda que não com a mesma ênfase de gente como Thomas Huxley e Francis Galton. Por mais que Darwin tivesse escrito que não havia incompatibilidade alguma entre crer em Deus e aceitar a teoria da evolução (um século depois, Georges Lemaître diria algo bem parecido sobre o Big Bang, mas desta vez referindo-se ao ateísmo), os textos trazidos por Gordon mostram as reservas de Darwin quanto à religião cristã, cuja ética “desafia” a seleção natural ao promover a defesa daqueles que a natureza, de outra forma, eliminaria.

E aí, o que fazemos com tudo isso?

Em primeiro lugar, vamos separar o que Darwin uniu. Ficar com o que é bom, nas palavras de São Paulo. Se o próprio Darwin misturou uma explicação que tem “méritos científicos inegáveis” (e que eu particularmente considero a melhor explicação atual para a variedade da vida na Terra) com concepções éticas ou religiosas questionáveis (para não dizer totalmente erradas), problema dele, e a essa altura ele já deve ter descoberto o tamanho do erro. Vamos manter e promover a parte boa, a da ciência, e descartar o resto, já que a aceitação da teoria da evolução não exige comprar o “pacote completo”. Evolução, eugenia, racismo e ateísmo não vão together like a horse and carriage, pra usar uma cançãozinha do Sinatra.

E, quanto à “metafísica implícita”, o que eu mantenho em relação ao meu comentário anterior é que ela não é tão implícita assim, ou ao menos não é intrínseca, mesmo que Darwin pensasse isso, e mais: ainda que ele quisesse isso. Há chaves de leitura que conciliam cristianismo e evolução sem precisarmos forçar a barra, por exemplo enxergando o continuum entre ser humano e demais espécies à luz da descrição bíblica em que o homem é criado “do pó da terra”, sem com isso diminuir seu status ontológico especial dentro da criação; ou entendendo as leis biológicas da evolução como uma expressão da criatividade divina, talvez até tendo em vista o surgimento da espécie humana – é interessante mencionar aqui o trabalho científico de Simon Conway Morris, para quem, se a “fita da evolução” fosse rebobinada e passada novamente, o resultado seria o mesmo: o aparecimento do homem. Podemos, com toda a tranquilidade, ir além do que Darwin escreve a Asa Gray quando diz que “me parece absurdo duvidar que um homem possa ser um teísta convicto e um evolucionista”; é absurdo também duvidar que alguém possa ser um cristão convicto e um evolucionista.

Um vídeo inspirador da BioLogos

Falando em cristãos convictos e evolucionistas, confira esse vídeo que a BioLogos acabou de publicar, escrito e narrado por Deborah Haarsma, presidente da fundação. Com imagens do novo telescópio James Webb e trechos bíblicos, ele quer estimular em nós a admiração pela grandeza do universo como obra divina. Se o listening não for o seu forte, tem uma transcrição no site da BioLogos.

Congresso na Argentina aceita papers só até terça-feira que vem

Aproveite o feriadão para ficar em dia com todos os eventos de ciência e religião que estão para ocorrer em breve. O 4.º Congresso Internacional de Saúde e Espiritualidade, do Nupes, da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), ocorre no fim de maio e ainda tem inscrições abertas. Mas vocês vão ter de correr pra valer mesmo é se quiserem enviar algum paper ao XI Congresso Latino-Americano de Ciência e Religião, marcado para setembro em Salta, na Argentina, porque o prazo termina em 2 de maio. Já houve uma prorrogação anteriormente, então não sei se haverá outra. E aí você ainda ganha mais dois meses para enviar o paper ao terceiro congresso da Sociedade Brasileira de Cientistas Católicos, que será realizado em outubro, na PUCPR.

Livro de entrevistas do Tubo de Ensaio já saiu da gráfica

A previsão era de que A razão diante do mistério da existência, livro que reúne quase 30 entrevistas que fiz para o Tubo de Ensaio ao longo dos quase 15 anos de blog e coluna, saísse da gráfica em 5 de maio. Mas o cronograma saiu melhor que a encomenda, e aqueles que participaram da pré-venda já começaram a receber seus exemplares! A campanha promocional continua, com o cupom de desconto NOETIKA30 (ignorem aqueles prazos de entrega no site). Ainda estamos pensando em eventos de lançamento. Eu certamente estarei no congresso do Nupes no fim de maio, em Juiz de Fora, mas ainda não sei se teremos um espacinho lá para um evento.

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