Grandes companhias multinacionais de alimentos têm utilizado cada vez mais o termo “agricultura regenerativa” para explicar suas preferências na aquisição de matérias-primas que venham de um sistema que não vise somente mais produção e renda, mas também melhore a condição dos recursos naturais que serão deixados às futuras gerações. Ou seja, não basta comprovar que os produtos não vêm de uma região de desmatamento; será necessário demonstrar, também, que foram obtidos por meio de processos que impactem positivamente a biodiversidade, melhorando a qualidade do solo, da água e do ar.
A boa notícia é que, no comparativo com outros países, o Brasil está bem à frente na sustentabilidade de sua agricultura, mesmo quando se aplica este novo filtro “regenerativo”. Diferente do cultivo orgânico, a agricultura regenerativa não veta o uso de fertilizantes e defensivos químicos ou, ainda, os organismos geneticamente modificados. Os europeus, contudo, são mais reticentes do que os norte-americanos quanto a isso.
Como o conceito ainda se encontra em construção, pesquisadores alertam para a necessidade de assegurar que práticas conservacionistas consolidadas – como o Sistema Plantio Direto, em que o Brasil é líder global – mantenham-se devidamente reconhecidas e contabilizadas dentro dessa agricultura regenerativa, que não pode descambar para ser apenas uma ferramenta de marketing das grandes corporações.
Multinacionais aderem à agricultura regenerativa
O fato é que as indústrias têm aderido ao novo conceito. A PepsiCo anunciou no ano passado que até 2030 pretende se abastecer apenas de fazendas que atuem no modelo da agricultura regenerativa. Isso envolve uma área de 2,83 milhões de hectares, montante de terra necessário para fornecer 100% dos ingredientes utilizados pela companhia. A Nestlé informou, no início deste mês, que vai destinar US$ 1 bilhão para acelerar a conversão de seus fornecedores de café para a agricultura regenerativa. O Brasil, maior produtor mundial de café, é um dos sete países contemplados pelo plano da companhia suíça.
Outra gigante do setor de alimentos e bebidas, a Unilever publicou em 2021 um documento especificando os princípios do que considera a agricultura regenerativa, que passará a exigir de seus fornecedores. Dentre eles, destaca os “impactos positivos na saúde do solo, na qualidade do ar e da água, na captura de carbono e promoção da biodiversidade”. Também são pressupostos “a proteção e a promoção do bem-estar das comunidades, o uso mínimo de recursos para produzir alimento de qualidade que satisfaça as necessidades atuais e futuras, e a otimização do uso de recursos naturais renováveis, diminuindo o uso de não-renováveis”.
Conceito em construção, a agricultura regenerativa ainda não é chancelada ou patrocinada por nenhuma plataforma global, como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), que já reconhece e apoia, por outro lado, o modelo de agricultura conservacionista, que trata basicamente de produzir alimentos “promovendo a biodiversidade e os processos biológicos naturais acima e abaixo da superfície do solo”.
SLC já testa o conceito de agricultura regenerativa
De olho na tendência mundial, um dos maiores grupos empresariais de cultivo de grãos do país, a SLC Agrícola, que planta 670 mil hectares em sete estados, já faz experimentos com a agricultura regenerativa em cerca de 6,5 mil hectares. Segundo Leonardo Celini, diretor de operações da SLC, todas as fazendas do grupo estão tratando do assunto de forma estratégica. No início, os custos de implantação podem até ser mais altos do que da lavoura convencional, mas os retornos têm sido “notáveis”. Os números não são revelados, visto que a fase ainda é de validação dos protocolos no campo.
A empresa estabeleceu como meta reduzir de 50% a 60% o uso de defensivos químicos a médio prazo. Isso se dá pela adoção massiva do Sistema de Plantio Direto – que naturalmente enriquece os níveis de matéria orgânica e de atividade microbiológica no solo - incrementado pelos insumos biológicos e pelo manejo integrado de pragas, que envolve o uso de predadores naturais e a rotação de culturas para eliminar naturalmente infestações.
A expressão “agricultura regenerativa” foi cunhada no início dos anos 80 pelo americano Robert Rodale, e estava ligada à produção de orgânicos. No entanto, como o sistema orgânico se mostrou incapaz de produzir em larga escala, surgiu um conceito intermediário, que preconiza o melhor dos dois mundos.
“A agricultura orgânica tinha a limitação do rendimento, e sérios problemas para controlar pragas e doenças. Com ela, não é possível alimentar toda a população, porque não tem escala. A agricultura regenerativa tem esse viés, de rotação de culturas, de plantas de cobertura para aumentar o nível de vida no solo, de uso de bactérias, fungos e minhocas do solo (nematoides) para o solo ter mais vida e gerar mais produtividade. E esse cultivo nada mais é do que o cultivo conservacionista, como o cultivo de uma horta, com redução do uso de defensivos sintéticos, os famosos agrotóxicos de antigamente”, destaca Celini.
Defensivo como remédio: pouco e na medida certa
As novas tecnologias ajudam na mudança de paradigma. Com sensores e imagens de satélites e de drones, por exemplo, já é possível direcionar as aplicações de inseticidas e herbicidas como se fossem remédio. “Você dá o remédio apenas para aquele doente, não precisa aplicar em toda a área, mas apenas na planta certa”, diz o diretor da SLC.
Num artigo científico que acaba de ser publicado, “Next Steps for Conservation Agriculture”, um grupo de cientistas (brasileiros, inglês e americano), alerta para o fato de haver ainda muitas definições de agricultura regenerativa ligadas a diferentes grupos de interesse. Eles defendem uma formulação científica chancelada por organismos internacionais. Dentre possíveis falhas no conceito, citam que o Rodale Institute, que cunhou originalmente a expressão, aponta a saúde do solo como o principal indicador, mas não menciona em nenhum momento a agricultura conservacionista ou o Sistema Plantio Direto, sem os quais, argumentam, a agricultura regenerativa não é sustentável.
Regenerar o que, cara-pálida?
O cientista brasileiro Pedro Luiz de Freitas, pesquisador da Embrapa Solos no Rio de Janeiro, e um dos autores do artigo, enfatiza que o Sistema Plantio Direto (SPD) deve permanecer como eixo principal. "Quando fala em regenerar, é regenerar o quê, cara-pálida? Tudo o que você faz na agricultura é voltado a melhorar as condições do solo para produzir melhor", resume. O SPD se baseia sobre o tripé de não revolver a terra, fazer rotação de culturas e manter cobertura permanente do solo. O próprio plantio de orgânicos fica comprometido em sua suposta sustentabilidade, quando o plantio direto não é respeitado, diz Freitas.
“Não posso chamar de agricultura orgânica quando a pessoa passa o arado e joga fora a matéria orgânica. No momento em que você passa um arado, uma grade pesada, um subsolador ou escarificador, metade da matéria orgânica vai embora em 24 horas. Se passar hoje, amanhã metade do carbono estocado vai embora”, sublinha.
Sistema Plantio Direto é usado pelos campeões de produtividade
Atualmente o Brasil é tido como referência mundial no plantio direto, com 33 milhões de hectares. No entanto, estima-se que apenas metade dos agricultores adotem o modelo completo. Segundo Freitas, muitos sacrificam o sistema em troca de uma estratégia comercial e logística de mercado de curto prazo. Agir assim, garante, é um equívoco. “Se eu não respeitar os três princípios básicos, o sistema vai a colapso. Ocorre a compactação, erosão, perda de matéria orgânica e diminuição da vida do solo. Isso é fatal. Não existem dogmas, não existem trincheiras de posicionamento. Dá uma olhadinha nos campeões de produtividade de soja do CESB (concurso nacional) e veja o que eles estão fazendo. É simples assim”.
Adotar a prática conservacionista pela metade acaba cobrando inevitavelmente seu preço, corrobora Jônadan Ma, presidente da Federação Brasileira do Sistema de Plantio Direto (Febrapdp). “Se não fizer o Sistema Plantio Direto, a cada três anos vai ter que entrar com grade, fazer subsolagem, porque o solo está se compactando. E daí não será um produtor conservacionista, vai ficar carbono negativo, fica devendo. Mas com a rotação de culturas bem feita, as próprias plantas de cobertura vão ser o arado natural do solo”, destaca. Ano a ano, o plantio direto segue em expansão, mais recentemente com os produtores de hortifrútis e nas culturas perenes e semiperenes, como café, cana-de-açúcar e cítrus. “Não precisa fazer tudo de uma vez só. Pode ser em parte da área, de 10% a 15%. Quem adota o sistema produz mais, não vai estar perdendo 20%”, sublinha.
A mudança mais disruptiva na agricultura brasileira
Em 2022 completam-se 50 anos da chegada do Sistema de Plantio Direto ao Brasil. Iniciou com Herbert Bartz, no Paraná, que trouxe a prática ainda incipiente dos Estados Unidos e a tropicalizou. “A mudança mais disruptiva na agricultura brasileira foi a entrada do Sistema Plantio Direto, um sistema conservacionista e sustentável. A agricultura regenerativa que estão falando agora é o plantio direto, com algo a mais. É mais uma questão conceitual, de rotulagem”, avalia Gabriel Barth, coordenador de pesquisas em solos e nutrição de plantas da Fundação ABC, nos Campos Gerais do Paraná, onde a implantação do sistema plantio direto chega a 80% dos produtores, um dos índices mais elevados no país.
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