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Neste ano, quando o Brasil deve ultrapassar pela primeira vez a marca de 300 milhões de toneladas de grãos, um gargalo logístico se acentuará, alcançando um patamar igualmente histórico: 120 milhões de toneladas não terão espaço de armazenagem.
É mais do que toda a safra da Argentina, que enfrenta o terceiro ano consecutivo de seca e irá colher apenas 75 milhões de toneladas, contra uma estimativa inicial de 122 milhões de toneladas. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) recomenda que os países tenham estruturas de armazenagem para comportar pelo menos 1,2 vez o tamanho de suas colheitas.
A defasagem brasileira vem se acentuando desde 2000, quando o país ainda tinha silos para guardar, se necessário, todas as safras de um ano. Segundo dados da Conab, desde 2010 a produção de grãos aumentou 82% – de 149 milhões de toneladas para 271 milhões em 2022, e podendo chegar a 310 milhões neste ano – mas a capacidade de armazenamento cresceu apenas 35%, de 136 milhões de toneladas para 183 milhões. Assim, é possível que, pela primeira vez, a estrutura de silos do país não dê conta nem sequer da safra de verão, estimada em 188 milhões de toneladas – e isso contando apenas os principais produtos, como soja, arroz e milho.
“Não ter armazém no campo custa mais caro para o agricultor e a sociedade. Todo mundo paga essa conta. 85% da estrutura de armazenagem está em centros urbanos e industriais, ou nos portos, e daí os caminhões ficam em filas, sem armazém, nem secador nem estrutura suficiente para receber essa produção. O produto começa a perder qualidade e o preço do frete acaba explodindo, é um ciclo vicioso bastante sério”, aponta Paulo Bertolini, presidente da Câmara Setorial de Armazenagem de Grãos da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq).
Abimaq defende triplicar linhas de crédito para armazéns
A diminuição desse gargalo logístico, por meio de mais linhas de crédito aos produtores, interessa à indústria pelo potencial de movimentar a economia. Exportadores de estruturas de silos e armazéns, os fabricantes brasileiros veem no mercado doméstico um gigante adormecido.
O cálculo da Abimaq é que para zerar o déficit de armazéns no país seriam necessários investimentos de R$ 80 bilhões. O pedido feito ao Ministério da Agricultura é para pelo menos triplicar o montante destinado a financiar as estruturas, atualmente na faixa de R$ 5 bilhões por ano. Com R$ 15 bilhões, diz a Abimaq, seria possível adicionar 10 milhões de toneladas por ano de capacidade de armazenagem.
Em 2021, o governo Bolsonaro editou decreto para qualificar para leilão 124 armazéns da Conab, mas o trâmite burocrático não se encerrou antes da mudança de governo. E, agora, é provável que os leilões nunca ocorram.
O atual governo rema em sentido contrário, e o próprio presidente Lula, e seus ministros, têm declarado que a intenção é retomar a compra de produtos pela Conab para formar estoques públicos e regular o mercado. Atualmente, os armazéns da Conab representam cerca de 1% da capacidade estática instalada no país.
Armazéns estatais são mais caros e ineficientes
“Se o governo for fazer, fica mais caro. E você continuará tendo as estruturas na cidade, no mesmo perfil de 85% da armazenagem hoje disponível. Não inova em nada. E envolve dinheiro público comprando produção num momento e vendendo em outro. Tudo com dinheiro público e não particular", diz Bertolini.
"Se for linha de crédito para o agricultor, ele vai pagar, vai devolver esse dinheiro e na hora de armazenar saberá o que é interessante dosar para vender no momento mais adequado. Nós temos que nos espelhar no que está dando certo no mundo todo. Os Estados Unidos não têm isso, e eles são um modelo que precisamos seguir nesse aspecto”, acrescenta.
A Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária (CNA) considera que há uma defasagem preocupante, e crescente, nas estruturas de armazenamento de grãos do país. Mas não ao ponto de exigir capacidade estática de 370 milhões de toneladas, como levariam a crer as projeções da FAO.
“A gente não enfrenta o inverno rigoroso dos Estados Unidos, temos a safrinha, e podemos armazenar duas a três vezes no ano, usando a mesma estrutura. 370 milhões de toneladas de capacidade estática é um número que não faz sentido”, diz Elisângela Pereira Lopes, assessora técnica da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA).
Ela reconhece, contudo, que o déficit preocupa. "Começa a assustar quando você sai de 85 milhões de toneladas de déficit para 122 milhões, de uma safra para outra. Se continuarmos crescendo de forma exponencial, teremos problemas", assinala.
A situação é mais crítica acima do paralelo 16, que divide o país ao meio. “Quando a gente olha para as regiões que mais produzem, que são o Mato Grosso e o Matopiba, o déficit já está chegando a 60 milhões de toneladas. É a metade do déficit do Brasil”, destaca Elisângela, enfatizando que uma política de fomento à construção de armazéns precisa olhar para essas regiões menos estruturadas.

País tem poucos armazéns dentro das propriedades
Em outra frente, a Abimaq aponta que é preciso pulverizar mais as linhas de crédito atuais. Hoje a maior parte dos recursos estaria indo para indústrias e cooperativas, o que ajuda a explicar o percentual de armazéns construídos nas fazendas, estagnado em 15% desde 2010.
“É preciso vocacionar o Programa para Construção e Ampliação de Armazéns (PCA) para dentro das fazendas, não para as indústrias e cooperativas, que têm acesso a outras linhas. Existe um interesse dos bancos em centralizar o dinheiro num grande tomador, é muito mais barato para o banco do que fazer pulverização. Mas, para o país, pela necessidade do agro brasileiro, é melhor que esse investimento aconteça dentro das fazendas”, enfatiza Bertolini.
O déficit de armazenagem “on-farm” é reconhecido pelas cooperativas, que, no entanto, entendem que não devem ser vistas sob o mesmo prisma de outras indústrias, também grandes tomadoras de empréstimos.
“A gente não pode olhar a cooperativa como um CNPJ apenas. Hoje 71% do quadro social das cooperativas agropecuárias brasileiras é composto de milhares de agricultores familiares, pequenos produtores. E eles precisam ser olhados de uma forma especial na formulação de políticas públicas, porque isoladamente não teriam condições de estruturar investimentos robustos e ter competitividade”, diz João Prietto, coordenador do setor Agro da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB).
Armazenar "on-farm" exige habilidades gerenciais
A decisão de instalar um silo na propriedade, além de exigir investimento pesado, demanda que o agricultor esteja disposto a entrar praticamente em um novo negócio. O produtor Sérgio Fortis, de Goioerê (PR), diz que a família planejou por quinze anos dar esse passo. O retorno do investimento em um complexo com capacidade de armazenar 250 mil sacas deve levar outros dez anos.
“A gente vê o armazém como uma outra empresa. Tem a empresa-fazenda e a empresa-armazém. Existe toda uma complexidade de secar, limpar, e manter a safra armazenada. É como um outro negócio, com novos funcionários, outras habilidades, administrações diferentes", explica Fortis.
"Hoje o agricultor bem-sucedido é considerado um empresário rural. Aquele agricultor caboclo, que anda com agenda e tal, está ficando para trás. Para administrar uma propriedade é preciso cuidar dos detalhes e do custo minuciosamente, como uma empresa”, diz.
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Com silo próprio, produtor consegue fugir de descontos por umidade
Fortis está apenas no segundo ano de operação com silos próprios. Ele destaca dois motivos que foram decisivos para o investimento. Primeiro, a logística: “Nossa região é muito forte em safrinha de milho, e na hora da colheita as cooperativas se entopem de caminhões, não conseguem receber a safra. O caminhão fica o dia inteiro para descarregar”, conta.
O segundo motivo se explica com a calculadora na mão: “Nesse ano, começamos a colher e estava chovendo. Quando conseguimos entrar na lavoura, colhemos soja com 25% de grãos ardidos. Se eu mandasse na cooperativa, ela daria uma tolerância de 8%, e me descontaria os outros 17%. Guardando no meu silo, eu faço uma mistura desse grão com os outros, que normalmente só tem 1% de avariados, e não tenho desconto nenhum. Com o manejo, eu mantenho o padrão de classificação. É o que as cooperativas fazem. Elas misturam e não são descontadas”, enfatiza.
Ele observa, contudo, que é preciso ter um volume significativo de grãos para compensar o investimento. E estar preparado para as sazonalidades da agricultura. “Aconteceu uma coisa incrível nessas duas safras de soja que recebemos. A primeira, no ano passado, foi de quebra extrema por causa da seca, a pior em 40 anos. E a desse ano vai ser a melhor safra de todos os tempos”, conta.
Não sem motivo, na agricultura não se recomenda contabilizar perdas e ganhos em cima de uma única safra, mas avaliar a sustentabilidade econômica do negócio numa perspectiva de vários anos. A Argentina, por exemplo, enfrenta o terceiro ano consecutivo de quebra das colheitas pela falta de chuvas. No Rio Grande do Sul já são duas quebras seguidas.




