A Índia quer replicar em seu território a revolução brasileira do etanol como combustível alternativo aos fósseis. O país asiático saiu de uma mistura de apenas 1,5% de etanol à gasolina, em 2014, para os atuais 10% e estabeleceu como meta alcançar 20% em 2025. No Brasil, esta mistura está hoje em 27% e pode ser elevada para 30%, segundo proposta do Ministério de Minas e Energia que será debatida na próxima reunião do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE).
Além de aumentar a mistura de etanol, ajudando a descarbonizar sua matriz energética numa iniciativa apelidada de "mini-Brazil", a Índia quer importar também a tecnologia tupiniquim dos carros flex, que acaba de completar 20 anos por aqui. Os flex foram atração do último salão do automóvel indiano, em janeiro, com carros, motocicletas e o famoso triciclo tuk-tuk rodando com combustível derivado da cana-de-açúcar. Os indianos elegeram como prioridade durante sua presidência do G20, neste ano, a criação de uma Aliança Global de Biocombustíveis envolvendo a própria Índia, Brasil, Estados Unidos e outros países interessados.
“Um dia vou contar para meus filhos e netos. O principal veículo de agronegócio indiano dizer que a indústria de açúcar e os fazendeiros de cana estão desenvolvendo um mini-Brasil na Índia, através da revolução do etanol, isso me dá orgulho de ser brasileiro”, diz Evandro Gussi, presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica), ex-deputado federal por São Paulo e autor da lei do RenovaBio, que fomenta o uso de biocombustíveis no país.
Etanol virou política de Estado
“A política do etanol passou a ser mais uma política de Estado do que do governo Bolsonaro ou do governo Lula. Montadoras como a Toyota, a Stellantis, a Volkswagen e um pedaço importante da academia estão voltados para este tema. Começamos a enxergar que o Brasil tem um grande ativo, que não pode ser jogado fora por um modismo que alguém de fora queira implantar aqui”, sublinha Gussi.
Ele sustenta que para criar uma rede de abastecimento de carros elétricos no país seriam necessários investimentos de R$ 1 trilhão até R$ 1,5 trilhão, enquanto a rede de etanol já está pronta e funcionando em mais de 40 mil postos de combustíveis, entregando praticamente o mesmo desempenho em termos de descarbonização, além de gerar emprego e renda em mais de 1,2 mil municípios.
Confira a seguir os principais pontos da entrevista de Gussi à Gazeta do Povo. A entrevista foi concedida antes da decisão da Petrobras de abandonar a paridade internacional do preço da gasolina – o que, conforme já ocorreu no passado, tende a prejudicar a competitividade do etanol no mercado doméstico.
“Acabou de sair um estudo feito pela Stellantis – que é uma empresa global europeia, tem marcas como Fiat, Jeep, Peugeot e Citroën – que mostra que o veículo movido pelo etanol brasileiro possui nível de emissões menor do que o veículo elétrico da média europeia. Porque na Europa há países que já têm fontes muito limpas, como a Noruega, mas tem países como a Polônia e a Alemanha, que fazem bastante uso de carvão, enquanto nós temos uma fonte de geração de energia elétrica limpa. E daí eu pergunto: qual o custo para a sociedade de um e de outro?", questiona Gussi.
É preciso incluir nessa conta, ressalta o executivo, que a cadeia produtiva do etanol, produzido a partir de cana-de-açúcar e de milho, emprega 2,4 milhões de pessoas de maneira direta e indireta. "Temos um sistema de distribuição, logística e varejo em 100% do território nacional, com uma presença agroindustrial em mais de 1,2 mil cidades. Então eu já estou entregando essa descarbonização sem custo para a sociedade brasileira, e mais do que isso, gerando emprego e renda em mais de 1,2 mil municípios".
"Só na cadeia de cana-de-açúcar, onde tem uma usina o PIB per capita aumenta em US$ 1.028 por ano. E nos municípios vizinhos o aumento é de US$ 324 por ano. Então, essa solução de bioenergia entrega descarbonização e faz bem para os aspectos socioeconômicos do Brasil. E não preciso de recursos públicos para entregar essa solução", argumenta o presidente da Unica.
Eletrificação não incrementa descarbonização
O setor de etanol afirma não temer a comparação com o carro 100% elétrico, e, de fato, incentiva a análise comparativa das duas soluções. Defensores da energia renovável a partir da cana e do milho criticam as benesses tributárias para a importação de carros elétricos, que deixam maior pegada de carbono em seu ciclo de vida, enquanto o etanol é submetido praticamente à mesma tributação da gasolina dentro do país.
Por outro lado, Toyota, Volkswagen e Stellantis trabalham no desenvolvimento de veículos híbridos que combinam etanol e eletrificação. A Volks, por exemplo, em parceria com a Unicamp, testa um automóvel em que o etanol passa por uma célula de combustível para quebrar suas moléculas e extrair hidrogênio que, por sua vez, propulsiona o motor elétrico. Uma tecnologia diferente dos modelos à bateria, que prevalecem no hemisfério Norte.
“A eletrificação não melhora a descarbonização no Brasil, entrega o que a gente já tem, não incrementa de modo relevante. Com o etanol, hoje você abastece seu carro no posto de combustível em quatro a cinco minutos. Para fazer algo semelhante com eletrificação, ou seja, ter toda essa disponibilidade em Curitiba, no Paraná, ou em Crato, no Ceará, a empresa pública EPE calculou que o custo dessa infraestrutura variaria de US$ 220 bilhões a US$ 300 bilhões. Ou seja, a sociedade brasileira teria de estar disposta a gastar algo entre R$ 1 trilhão e R$ 1,5 trilhão. A pergunta é: o cidadão brasileiro vai tirar esse dinheiro do bolso e isso vai melhorar a emissão de CO2? Não. Vai ser o que a gente já tem hoje com o etanol", afirma Gussi.
Para ser viável, segundo a Unica, o carro elétrico tem recebido subsídios que variam entre US$ 3 mil e US$ 9 mil, na Alemanha, e cerca de US$ 7,5 mil nos Estados Unidos. "Será que seria racional que o governo brasileiro passasse agora a subsidiar veículos, a dar entre R$ 18 mil e quase R$ 60 mil reais para o sujeito comprar um veículo, sendo que hoje já temos veículos que apresentam o mesmo índice de descarbonização?", questiona o executivo.
“A conta que a gente faz é em gramas de CO2 equivalente por quilômetro rodado. Quando eu faço a avaliação do ciclo de vida, quando olho quantos gramas de emissão eu tenho no elétrico brasileiro, e quantos gramas no veículo flex, rodando com etanol, a diferença é praticamente nenhuma. E o etanol tem ganhado cada vez mais eficiência energético-ambiental, ou seja, está cada vez mais emitindo menos. Porque estamos melhorando os processos no campo e daqui a pouco eu posso até ter um etanol com zero emissão", argumenta Gussi.
Apostar em carros elétricos poderia causar desindustrialização, diz Unica
Apostar na substituição do etanol pelo carro elétrico pode implicar numa rápida desindustrialização do país, adverte o presidente da Unica. E não faria sentido, segundo ele, porque as soluções têm resultados similares em termos de sustentabilidade.
"Se a gente tira o frisson do piar das relações públicas e dos lobbies, e nada contra o lobby feito com alto nível de compliance, se a gente tira essa espuma, a pergunta que fica é: por que vou fazer investimentos trilionários, e quem vai pagar isso ao final do dia é o contribuinte brasileiro, sendo que já tenho uma solução que chega ao mesmo resultado? E sem custo para a sociedade, pelo contrário, gerando emprego e renda", diz.
“A eletrificação no Brasil significa desindustrialização no Brasil. As plantas industriais de carros elétricos por razões econômicas estarão nos EUA, Europa e China. Não vão acontecer no Brasil em larga escala, não vão acontecer na África em larga escala, não vão acontecer nos países asiáticos, fora a China. Se você for consultar os 15 principais consultores de indústria automotiva no mundo, ninguém vai assinar um documento dizendo que o Brasil será um grande parque industrial de veículos elétricos. Não é verdade. A estratégia das montadoras focadas exclusivamente em eletrificação é diferente da Toyota, Stellantis e Volkswagen, que dizem ‘olha, vamos ter projetos de eletrificação onde isso faça sentido, e vamos ter projetos com bioenergia onde isso faça sentido’. Isso me parece mais inteligente", afirma.
“De cada dez perguntas que recebo, onze são assim: vai ser eletrificação ou etanol? Eu me recuso a responder essa pergunta infantil. Digo que vai ser o que for bom para determinadas regiões, determinados países, levando em consideração uma série de fatores, que se resumem nestas duas coisas: entrega de descarbonização e melhor custo-benefício para a sociedade desta entrega. Não sou contra o carro elétrico. Tem lugares em que a eletrificação vai entregar a descarbonização ao menor custo para a sociedade. E aí ótimo, tem que ser eletrificação", diz o executivo.
Índia propõe aliança em torno do etanol
Neste ano em que ocupa a presidência do G20, a Índia colocou como meta o estabelecimento de uma Aliança Global de Biocombustíveis, liderada pelos três principais players do setor – a própria Índia, Brasil e Estados Unidos. A ideia é criar um ecossistema de cooperação tecnológica e padrões de combustíveis e motores, visando favorecer a expansão de biocombustíveis como o etanol.
Gussi acredita que esse é um caminho sem volta. “A Unica contribuiu muito para esse projeto que está acontecendo na Índia, o país mais populoso do mundo e que tem mais de 80% de sua matriz energética baseada em fósseis. Os indianos entenderam que a pura eletrificação não resolve suas emissões, porque mais de 70% da energia elétrica deles vêm do carvão. Eles têm um potencial de produção de etanol e estão apostando nisso, inteligentemente. Tanto que há um convenio da Toyota Brasil com a Toyota Índia, de um projeto piloto de híbrido flex, e já foi enviado o primeiro carro lá para testes", sublinha.
"A Índia não misturava quase nada de etanol na gasolina, hoje já mistura 10%, até 2025 vai misturar 20%. E já desenha a próxima parcela desse projeto, que é utilizar motores flex e híbridos-flex, como os que nós temos no Brasil. O primeiro-ministro indiano disse que o etanol é uma das principais estratégias da Índia no Século 21. Por isso que esse pedaço da indústria presente no Brasil enxerga que é uma solução que vai ajudar vários países, sobretudo na América Latina, África e Ásia", conclui Gussi.
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