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Para compreender melhor uma foto histórica
| Foto:

O site do Instituto Piano brasileiro divulgou uma foto que me deixou boquiaberto. A foto foi tirada em 1962 no vernissage da cantora (meio soprano) e artista plástica brasileira Annete Celine. Aliás a foto veio de sua coleção particular. Compreender quem está nesta foto pode ser tremendamente enriquecedor tanto para a história da arte pianística entre nós como da enorme contribuição de estrangeiros que vieram ao Brasil fugindo do antissemitismo que assolava a Europa na primeira metade do século XX. A presença de uma das maiores pintoras brasileiras (Tarsila do Amaral) faz com que a foto assuma aspectos que vão além do pianismo brasileiro. Na foto vemos (sentadas da esquerda para a direita) Felicja Blumental, Guiomar Novaes, Yara Bernette e a pintora Tarsila do Amaral. Em pé, da esquerda para a direita, temos: Anna Stella Schic, Souza Lima (atrás de Guiomar Novaes), o professor José Kliass (atrás de Yara Bernette, sua sobrinha), Gilberto Tinetti, Annete Celine (filha de Felicja Blumental), Markus Mizne (esposo da mesma),João Carlos Martins e Odette Faria. Para as novas gerações muitos destes nomes são completamente estranhos. Por isso creio que é importante falar dos principais personagens desta foto, figuras que merecem toda a nossa reverência. Vou me ater apenas aos músicos já falecidos.

Felicja Blumental

Esta grande pianista nasceu em Varsóvia no ano de 1908. Estudou piano com Zbigniew Drzewiecki e composição com o mais importante compositor polonês do início do século, Karol Szymanowski. Em 1938 ela e seu marido, o artista plástico Markus Mizne, fogem para o Brasil, tornando-se posteriormente cidadã do nosso país. Excelente intérprete de Chopin, de Szymanowski, de Mozart e de Beethoven vai se interessar profundamente pela música brasileira. Prova maior é que Heitor Villa-Lobos dedicou a ela seu Concerto Nº 5 para piano e orquestra (na minha opinião o melhor da série) que ela estreou em Londres em 1955 sob a regência de Jean Martinon, e que gravou no ano seguinte em Paris sob a regência do próprio autor. Mas esta incrível mulher não parou por aí. O exemplo maior de sua estreita colaboração com a música de seu tempo é que em 1972 tocou a estreia mundial da Partita para cravo e orquestra do compositor polonês Krzysztof Penderecki, uma de suas mais ousadas composições. Foi ela quem gravou a obra pela primeira vez em 1979 sob a regência do autor. Faleceu em 1991 em Israel, em meio a uma turnê de concertos.

Guiomar Novaes

Uma das mais importantes pianistas do século XX Guiomar Novaes (1894-1979) permanece como uma das maiores glorias da música clássica brasileira. Internacionalmente foi a musicista brasileira mais conhecida. Participou da Semana de Arte Moderna de 1922 executando obras de Satie e Villa-Lobos. Foi solista das mais importantes orquestras do mundo, e suas gravações são até hoje consideradas mundialmente como referências absolutas. Muito mais lembrada fora daqui, é mais uma triste história de nosso descaso cultural.

Yara Bernette

Outra excepcional pianista Yara Bernette (1920-2002) estudou em São Paulo com seu tio José Kliass. Fatos notáveis da vida desta grande artista é que foi a primeira pianista mulher a executar o Concerto Nº 2 de Brahms com a Filarmônica de Berlim, que na ocasião foi regida por Karl Böhm. Foi contratada da Deutsche Grammophon e em 1972 se tornou chefe da cadeira de piano da Escola Superior de Música e Arte Dramática de Hamburgo, na Alemanha. Assim como Felicja Blumental atuou diversas vezes como solista em concertos regidos por Heitor Villa-Lobos.

Anna Stella Schic

Outro destaque na foto Anna Stella Schic (1922-2009) foi uma importante pianista brasileira, a primeira a gravar a obra integral para piano de Heitor Villa-Lobos, de quem foi grande amiga. Também estudou com José Kliass em São Paulo e com Marguerite Long em Paris. Casou em segundas núpcias com o professor e compositor francês Michel Philippot (1925-1996). Os dois foram responsáveis pela estruturação do curso de música da Unesp. Por isso residiram em São Paulo de 1976 até 1979.

Sousa Lima

João de Sousa Lima (1898 – 1982) foi um grande pianista paulista. Estudou no Brasil com Luigi Chiaffarelli (o mesmo professor de Guiomar Novaes) e na França com Marguerite Long. Amigo pessoal dos compositores franceses Maurice Ravel e Paul Dukas, colaborou de forma decisiva para que Villa-Lobos se inserisse no meio musical francês. Amigo de Mário de Andrade atou frequentemente como regente. Foi responsável pela formação de inúmeros pianistas. Pelas poucas gravações que realizou percebe-se que foi um pianista excepcional. Foi também muito profícuo como compositor.

José Kliass

José Kliass (1895-1970) foi um dos mais importantes professores de piano do Brasil na segunda metade do século XX. Nascido na Rússia e de origem judaica, José Kliass (1895-1970) estudou em seu país e mais tarde no Stern’s Conservatório, em Berlim, com o extraordinário professor Martin Krause, que foi discípulo e secretário particular de Franz Liszt. Transferiu-se para o Brasil depois da primeira guerra mundial. A lista de seus alunos que estudaram por mais de quatro anos com ele e que se tornaram instrumentistas renomados é impressionante: Bernardo Segall, Estelinha Epstein, Yara Bernette, Anna Stella Schic, Belkiss Carneiro de Mendonça, Lídia Simões, Isabel Mourão, Ney Salgado, Jocy de Oliveira, Glacy Antunes de Oliveira e os irmão João Carlos e José Eduardo Martins, entre muitos outros.

À guisa de conclusão

Conheci pessoalmente Guiomar Novaes, Yara Bernette e Anna Stela Schic, sendo que com as duas últimas trabalhei profissionalmente. Anna Stella era esposa de meu principal professor, Michel Philippot, e tive um estreito contato pessoal com ela. Em mais de uma vez me falou de José Kliass e de sua experiência tendo sido aluna dele por muitos anos. O que me impressionou muito até hoje é a diferença de personalidade destas grandes pianistas. Cada uma de sua própria maneira se expressaram de forma altamente pessoal. Esta foto demonstra uma riqueza e diversidade cultural que sinto que se torna cada vez mais rara entre nós. Para concluir cito as palavras do pianista José Eduardo Martins a respeito de seu mestre, José Kliass, e de como vê a situação do ensino de piano na atualidade: “Se as denominadas Escolas de Piano deixaram de ter no Brasil a aura que mestres reverenciados e competentes de outrora conseguiram conquistar em contexto sociocultural totalmente outro, mais ainda a figura de José Kliass se apresenta de maneira insofismável”. “ Homogeneizou-se a carreira de pianista, pois hoje são incontáveis os que percorrem o planeta, tantos deles oriundos do Extremo-Oriente e quase todos egressos de concursos que possibilitam breves holofotes a tantos virtuoses, luzes essa dirigidas a cada ano a novos vencedores dos incontáveis concursos internacionais de piano. Executam majoritariamente as mesmas obras conhecidas do Sistema, obedecendo in totum o que fazem os pianistas já estabelecidos na carreira. Pouco a fazer”! Que esta foto sirva de estímulo a todos nós.

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