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Personagem Stephen, o capitão do mato vivido por Samuel L. Jackson no filme "Django Livre", de Quentin Tarantino
Personagem Stephen, o capitão do mato vivido por Samuel L. Jackson no filme "Django Livre", de Quentin Tarantino| Foto:

“Este governo falhou com o negro. Essa, assim chamada, democracia fracassou com o negro. E todos esses esquerdistas brancos, definitivamente, falharam com o negro. […] Toda a luta pelos direitos civis precisa de uma nova interpretação, uma interpretação mais ampla”. (Malcolm X, The ballot or the bullet, 1964).

No dia 24 de março de 1964, Malcolm X e Martin Luther King Jr. se encontrariam pela primeira e única vez em toda sua vida. O Senado norte-americano estava promovendo uma série de debates sobre a formulação do Civil Rights Bill – a Lei dos Direitos Civis, que seria aprovada no ano seguinte – e Malcolm tinha acabado de participar de um debate, enquanto Dr. King dava uma coletiva de imprensa em outra sala. Em vez de ir embora, Malcolm foi até a sala onde estava King e sentou-se na última fileira. Ao fim da entrevista, os dois saíram por portas diferentes, mas Malcolm foi ao encontro de King para cumprimentá-lo.

“Bem, bom te ver, Malcolm” – disse King. “Bom te ver”, respondeu Malcolm X, e emendou: “agora você será investigado”. Os dois riram, trocaram um aperto de mão e a foto que selou o único encontro dos dois grandes líderes do movimento pelos direitos civis dos negros americanos até hoje gera reflexão. Seria aquele, finalmente, o momento no qual os dois gigantes – que antagonizaram duramente durante toda sua carreira – se reconciliariam? Seria o fim da troca de acusações e ofensas?

Malcolm X tinha acabado de romper com a Nação do Islã (8 de março de 1964) – sobre isso, veja meu vídeo no Youtube – e parecia séria e curiosamente interessado em uma aproximação com Martin Luther King Jr. Quase um ano antes, em 31 de julho de 1963, Malcolm já havia tentado uma aproximação, enviando-lhe uma carta e propondo um encontro no sentido de construir uma “Frente Unida” para enfrentarem, juntos, o problema do racismo na América. King recusou a proposta. Sim, o apóstolo da não violência recusou o convite feito pelo revolucionário. Essa não tinha sido a primeira e nem seria a última vez que Malcolm X tentaria uma aproximação com King. Em 5 de fevereiro de 1965, Malcolm foi a Selma, no Alabama, reduto de King e palco do famigerado massacre na Marcha de Selma a Montgomery, enquanto este estava preso, para falar ao Comitê Coordenador Estudantil da Não Violência; e mesmo tendo feito um discurso crítico a King – que irritou profundamente a audiência –, teve uma longa conversa com sua esposa, Coretta Scott King, garantindo que sua intenção era ajudar.

Mas poucos dias depois, em 21 de fevereiro, Malcolm X foi assassinado por membros da Nação do Islã, não tendo tempo de desenvolver seu ativismo apartado do radicalismo racista dos muçulmanos pretos.

Sobre ele, disse Martin Luther King: “Ele era um orador eloquente em defesa de seu ponto de vista, e ninguém pode, honestamente, duvidar que Malcolm X tinha uma grande preocupação pelos problemas que nós, como raça, enfrentamos. Embora nem sempre concordássemos em relação aos métodos para resolver os problemas raciais, sempre tive grande afeição por Malcolm e achei [sic] que ele tinha grande habilidade de apontar a existência e a raiz do problema”.

No entanto, durante sua vida de ativismo, o antagonismo desses homens chegava às raias da inimizade, e seus ideais pareciam inconciliáveis. Malcolm X se referia a Dr. King como Uncle Tom (Tio Tom), personagem título do famosíssimo romance abolicionista de Harriet Beecher Stowe, Uncle Tom’s Cabin (A cabana do Pai Tomás), publicado em 1852 e considerado o segundo livro mais vendido da história americana, perdendo somente para a Bíblia. O impacto desse livro foi tão grande sobre a América escravista que Abraham Lincoln teria dito, ao encontrar a autora, em 1862, na Casa Branca: “então você é a jovem cujo livro iniciou essa grande guerra [de Secessão]?”

Pai Tomás – é um mistério por que trocaram “tio” por “pai” – é um escravo de meia-idade, cristão fervoroso e muito querido por seu senhor, Arthur Shelby, e sua família. Por problemas financeiros, Shelby vende Tom a um comerciante de escravos. Tom é comprado por Augustine St. Clare – quem tem uma filha, a pequena Eva, também muito cristã, com quem Tom inicia uma profunda amizade. Posteriormente, por uma série de circunstâncias, Tom é vendido novamente; mas quem o compra é um crudelíssimo fazendeiro, Simon Legree. E é pelas mãos de Legree que Tom sofre o seu martírio, sendo assassinado por se recusar, terminantemente, a entregar o destino de escravos fugitivos.

Pois é, Pai Tomás é um herói, um mártir, um espírito superior num mundo em que negros eram inferiorizados. Mas, após o sucesso do livro, outras versões do personagem foram criadas por racistas do Sul americano, retratando-o como um escravo servil, dedo-duro e simpático à escravidão. E é essa versão que ficou famosa, transformando-se em xingamento feito pelos próprios negros àqueles que consideram traidores da causa. Ou seja, em vez de restituírem o caráter heroico do personagem original, assumem a caracterização pejorativa feita pelos racistas; aceitam a “apropriação cultural”, caso queiram problematizar. Vai entender.

Voltando a Malcolm e Martin.

Malcolm X chamava Martin Luther King de Pai Tomás porque dizia que seu método de resistência não violenta nada mais era do que subserviência ao sistema opressor. Como disse num famoso discurso, Message to the Grass Roots, de 1963: “Assim como o mestre de escravos daquela época usava o Tomás, o negro da Casa, para manter os negros do Campo sob controle, o mesmo senhor de escravos de hoje tem negros que nada mais são do que os modernos Pais Tomáses, os Pais Tomáses do século 20, para manter você e eu sob controle. Para nos manter sob controle, mantenha-nos passivos, pacíficos e não violentos”. Essa era uma acusação recorrente de Malcolm sobre King, cada vez mais incisiva e raivosa.

Por outro lado, Dr. King também acusava os métodos de Malcolm X de serem prejudiciais à causa dos direitos civis. Disse King num sermão: “Os senhores classificam nossa atividade em Birmingham de extremista. A princípio fiquei muito desapontado pelo fato de colegas de sacerdócio considerarem extremistas nossos esforços não violentos. Comecei a pensar sobre o fato de que estou no meio de duas forças opostas na comunidade negra. Uma delas é a da complacência, constituída, em parte, de negros que, em resultado de longos anos de opressão, foram de tal modo privados do respeito próprio e do senso de ‘ser alguém’, que se ajustaram à segregação; e, em parte, de uns poucos negros de classe média que, em função de um diploma acadêmico e da segurança econômica, e também porque lucram de alguma forma com a segregação, tornaram-se insensíveis aos problemas que afligem as massas. A outra força é a do ressentimento e do ódio, que se aproxima perigosamente da apologia à violência. Ela se expressa nos vários grupos de nacionalistas negros que se espalham pelo país, o maior e mais conhecido deles sendo o movimento muçulmano de Elijah Muhammad [do qual Malcolm fazia parte]. Nutrido pela frustração do negro em função da permanência da discriminação racial, esse movimento é constituído de pessoas que perderam a fé em seu país, repudiaram totalmente a cristandade e concluíram que o homem branco é um incorrigível ‘demônio’. Tentei equilibrar-me entre essas duas forças, dizendo que não devemos imitar o ‘não fazer nada’ dos complacentes nem o ódio e o desespero dos nacionalistas negros”.

Dr. King dizia compreender os motivos do nacionalismo negro de Malcolm e a Nação do Islã, que baseava-se no desespero de alguns pela persistência do racismo estrutural – esse, sim, com leis discriminatórias e divisão física da sociedade. Porém, que haviam substituído a supremacia branca pela supremacia negra. No mais, ignorou todas as tentativas de aproximação de Malcolm X até o fatídico dia 24 de março de 1964.

Porém, para além de todo o desprezo que um tinha pelos métodos do outro, não se consideravam inimigos de fato, e diante do ataque de seu verdadeiro inimigo, manifestavam a união ideal e necessária a uma causa tão complexa.

Malcolm chamou King de Uncle Tom inúmeras vezes, em discursos e entrevistas, sistematicamente. Mas quando viu, na televisão, King ser espancado por um homem branco, disse: “Eu o vi sendo derrubado na televisão, vi o homem bater em sua boca. Bem, isso me machuca […] Porque eu sou negro e ele é negro – não me importa o quão idiota ele é. Ainda assim, quando vejo um homem negro apanhando na boca, sinto-o, porque pode acontecer com vocês ou comigo. E se eu estivesse lá com o King, e visse alguém batendo nele, eu viria em seu socorro. Eu estaria traindo a mim mesmo se fizesse vocês pensarem que não faria isso”.

E King, diante da morte de Malcolm X, disse: “O assassinato de Malcolm X foi uma terrível tragédia […] Certamente continuaremos discordando, mas devemos discordar sem nos tornarmos violentamente discordantes. Vamos sofrer a tentação da amargura, mas devemos aprender que o ódio é um fardo pesado demais para um povo que caminha em direção ao seu encontro com o destino. O negro americano não pode correr o risco de destruir suas lideranças. Homens de talento são muito raros para serem destruídos pela inveja, pela ambição e pela rivalidade tribal antes de atingirem a maturidade plena. Da mesma forma que o assassinato de Patrice Lumumba no Congo, o assassinato de Malcolm X privou o mundo de um líder potencialmente grande. Eu podia não concordar com nenhum desses dois homens, mas conseguia ver neles uma capacidade de liderança que podia respeitar e que só estava começando a amadurecer em matéria de perspicácia e sabedoria”.

Consegue imaginar esses homens lançando um ao outro nas mãos de seus verdadeiros algozes? Comemorando os ataques que sofriam, mutuamente, dos racistas? Pois é, nem eu. A honestidade e o senso da importância que cada um tinha, para além de suas enormes diferenças, não lhes permitiria tamanha baixeza.

Enquanto isso…

Aqui no Brasil, é público e notório que o nível intelectual dos líderes do movimento negro decaiu vertiginosamente. Um movimento que um dia ostentou figuras como José Bento de Assis e Alberto Guerreiro Ramos foi reduzido quase completamente à escravidão ideológica de teorias acadêmicas europeias, quando não a um bando de jovens iletrados nas redes sociais, que insistem em desprezar seus verdadeiros mestres para seguirem racistas como Karl Marx e Che Guevara – inventando, ainda, os mais estapafúrdios artifícios para defendê-los. A comunhão de ideais que pregam é falsa. O pan-africanismo como “a ideia de uma África unindo o pensamento e os ideais de todos os povos do continente negro” (W. E. B. Du Bois) só existe se você for acólito subserviente de sua doutrina. Como bem disse Abdias Nascimento: “A esquerda é cega, surda e muda no que se refere aos problemas específicos do negro […] Para eles […] todos são iguais perante a lei… do proletariado. Pobre de quem quiser ser diferente!” Tais militantes estão tão confortáveis na senzala ideológica, sob o racialismo europeu, que ignoram completamente sua condição de servos. E a servidão é tão profunda, tão arraigada, eles amam tanto seus novos senhores (Marx, Foucault, Bourdieu, Sartre etc.), que, diferentemente de Malcolm e King, não pensam duas vezes em lançar seus irmãos às garras de racistas empedernidos única e exclusivamente por discordarem de suas posições.

Vários líderes negros brasileiros foram atacados por chacais marxistas. Os já citados Abdias Nascimento e Alberto Guerreiro Ramos são casos notórios. Guerreiro Ramos, marxista ele próprio, escreveu livros criticando a esquerda brasileira e sociólogos consagrados como Florestan Fernandes; foi lançado no mais profundo ostracismo.

Os casos mais recentes são o do professor Carlos Moore Wedderburn e do vereador Fernando Holiday.

Moore, cubano e dissidente da revolução de Fidel e Che Guevara, escreveu O Marxismo e a questão racial, tecendo duras críticas a Marx e Engels. Em 2014 participou de um debate sobre pan-africanismo e racismo, na Uerj, com o professor e político Mauro Iasi, comunista filiado ao PCB. Moore foi atacado por Iasi, que lhe mandou “estudar História”. A confusão que se instaurou no local foi tão grande que Moore, um senhor de mais de 70 anos, teve de ser escoltado por alunos para não ser agredido fisicamente. E o movimento negro fez o quê? Nada. Alguns coletivos de negros marxistas apoiaram Iasi. Atitude vergonhosa para com um homem que conviveu com Malcolm X, Cheik Anta Diop e Aimé Césaire.

Fernando Holiday, jovem do Movimento Brasil Livre, eleito vereador pelo DEM no município de São Paulo, é o atual desafeto preferido do movimento negro brasileiro e da esquerda. Atacado sistematicamente por ser negro e defender, por exemplo, o fim do sistema de cotas raciais e o liberalismo econômico, Holiday foi alvo, no dia 18, do político Ciro Gomes, pré-candidato à Presidência da República pelo PDT. Em entrevista à rádio Jovem Pan, Gomes, num de seus arroubos de destempero teatralizado, chamou Holiday de “capitãozinho do mato”. Holiday reagiu, chamando Ciro Gomes de racista e dizendo que irá processá-lo por injúria racial (artigo 140, parágrafo 3.º, do Código Penal). Apesar de não gostar muito da ideia de usar o Estado contra esse tipo de atitude, a lei existe e deve ser cumprida. E, no meu modo de ver, está caracterizado o racismo quando, valendo-se de uma caraterística fenotípica de Holiday – sua cor –, Ciro Gomes lhe atribui (a ele, especificamente) um epíteto que é o equivalente ao Uncle Tom americano: Capitão do Mato – a figura do negro que trabalha para o senhor, perseguindo e castigando os próprios negros desobedientes e fugitivos. Sem contar que só é possível existir capitão do mato onde há escravos. Portanto, de quebra, Ciro Gomes chama a todos que supostamente defende de escravos.

Mas ora essa, o fato de Holiday discordar do socialismo não significa que ele quer o mal dos negros; ele não trai a sua raça por acreditar que o liberalismo é a via mais adequada para diminuir a pobreza – inclusive dos negros. Ser contra o vitimismo do movimento negro atual – ou seja, buscando uma atitude proativa, de solução de seus próprios problemas sem a exploração sentimental das circunstâncias – não o coloca na posição de Negro da Casa Grande. Ele só está exercendo sua liberdade de pensamento. Toda a militância, quando o ataca (ou a qualquer outro negro) em nome da ideologia que é senhora de seus destinos, quando persegue um negro a ponto de deixá-lo ser ofendido por alguém que deseja, de modo evidente, usá-los para obter vantagens eleitorais, está fazendo o trabalho sujo de caçar aqueles que fogem da senzala ideológica, criada pela esquerda para reunir, sob seu teto (Casa Grande), toda a pauta do ressentimento social fomentado por ela, mantendo uma massa eleitoral cativa, obediente e cega. Traem a realidade histórica do próprio movimento em nome de folguedos e migalhas que caem das mesas dos senhores.

Bom, diante disso, quem são os Capitães do Mato, mesmo?

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