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Atualizando a comida alemã
Chega outubro e o imaginário popular é tomado pelas festas típicas alemãs do Sul do Brasil. Pensa-se em chope, joelho de porco, chucrute, purê de maçã, strudel… Tudo que os imigrantes trouxeram para o país no século passado. Para o chef Heiko Grabolle, natural da Alemanha, é preciso atualizar o conceito de culinária germânica e tirar a pecha de “comida pesada”. Ele mora no Brasil há dez anos, dá aula no restaurante-escola do SENAC de Blumenau e atua como food stylist e consultor.
Em agosto, lançou o livro Culinária Alemã, pela editora do SENAC, no qual apresenta sua versão para diversos preparos tradicionais e receitas contemporâneas. Muita batata, champignon, carne suína, bovina, salmão e preparos que fogem daqueles que povoam a mente do brasileiro.
“Tem dois anos de pesquisa neste livro, que é uma mistura de comida atual e de cozinha dos imigrantes. Essa é a primeira edição, com 100 receitas. Ainda vamos aumentar”, diz. As fotos do livro foram feitas com o fotógrafo Michel Téo Sin, com quem trabalha frequentemente.
A experiência em restaurantes da Alemanha, Suíça, Espanha, Inglaterra e cruzeiros – “a melhor escola para um chef”, ele garante – lhe deu um conhecimento de comida típica de vários países e a base para avaliar sua própria herança gastronômica. Em julho, quando esteve no restaurante-escola do Senac-PR para a semana de gastronomia alemã, o chef conversou com o Bom Gourmet sobre sua carreira e como recriar a tradição alemã à mesa:
Todo food stylist tem que ser chef?
Não. O que ajuda é conhecer as técnicas, saber o que é caramelizar, o que é fritar, o que é congelar. Se você é chef e vira food stylist, é uma vantagem, mas não é fundamental. Na verdade, o que um chef faz? Deixa a comida bonita. Ninguém vai lá e plá! Todo mundo gosta de comida bonita. Aí juntei o hobby e o nicho e deu certo. No primeiro ano atendi a Bunge Alimentos, com R$ 120 milhões de faturamento anual. Fiz algumas fotos de pão francês, panetone. Aí investi muito dinheiro nisso, vi que dava para explorar, levar como profissão mesmo.
E como você veio parar no Brasil?
Casei com uma manezinha da Ilha [apelido dado aos nascidos em Florianópolis], a Gisela. Conheci na minha viagem na Espanha como cozinheiro, porque sou cozinheiro e com um jeitinho brasileiro me convidou para um churrasco em casa. E eu fui! Alemão quando diz sim, diz sim, entendeu? E quando cheguei no verão era alta estação na ilha, fui para praia, tudo. Além da paixão e de ter gostado do país, eu não conhecia nada da comida e foi interessante. Tinha tudo a ver com a minha profissão. “Aipim, macaxeira, mandioca”, não sabia o que era. Pirão, arroz… Primeira vez que cozinhei para a minha sogra fiz arroz e feijão. Fiz feijão igual na Alemanha: cozinhei e joguei o caldo fora, servi com arroz de papa. A minha sogra olhou pra mim, olhou pra minha esposa e falou “boa sorte com esse cara” [risos]. Caiu o mundo para mim. Eu tinha mestrado em cozinha, tinha viajado da Antártica até o Ártico [em cruzeiros], tinha tido instrutores na França, na Itália, servi como militar pela Otan, e cheguei no Brasil e nem sabia fazer arroz e feijão. Foi um desafio muito grande.
O que te impressionou na comida brasileira nos primeiros contatos?
Pastel. Pastel de queijo, pastel de carne… Não há nada parecido com isso na Alemanha. É a primeira coisa que você come, fast-food. Você não chega em um país e alguém vai cozinhar [todos os pratos típicos] para você. Pão de queijo e coxinha eram coisas novas. Quando chegava, comia sem saber o que tinha dentro ou como era feito. Só depois fui descobrir o valor e gostei.
Como é ser chef de uma cozinha em cruzeiro?
É planejamento. Eu comecei em 1999 em cruzeiro. Dentro da carreira dos cozinheiros, trabalhar em navio é o ápice, porque é o mais puxado, mais extremo. Para um cozinheiro ser bom tem que fazer pelo menos um contrato no navio. Tem que imaginar mil pessoas tomando café, almoçando e jantando. São três mil refeições diárias. Não existe folga. Os cardápios são montados um ano antes, as compras são feitas seis meses antes. Em todos os portos você pode comprar o que quiser de verduras, frutas e hortaliças frescas. Você trabalha mais com peixes e carnes congelados, o restante é fresquinho. A comida de cruzeiro hoje é muito boa, melhor que em terra por causa da infraestrutura. Como você sabe que todos os dias tem que cozinhar três mil refeições, os navios de hoje são criados para isso. O fluxo da cozinha é desenhado desde como entrar, trabalhar a servir, de um jeito que já é perfeito, por isso é uma escola.
Você, um alemão e chef de cozinha, vê semelhança na comida servida como típica alemã nas festas de outubro e as que são corriqueiras na Alemanha?
Eu fui conhecer a cozinha dos imigrantes alemães aqui, aprendi a fazer marreco recheado no Brasil. A cozinha que temos aqui é uma cozinha conservada, antiga e que foi trazida pelos imigrantes. E o que o imigrante traz? Hortifruti? Não, ele traz conservas, técnicas de cocção e produtos conservados que duram muito tempo e no qual ele confia. Então a primeira coisa que o alemão fez ao chegar no Brasil foi reproduzir o que ele confiava. As frutas foram substituídas: banana, abacaxi, manga, mamão. Não tinha mais pera, não tinha mais ameixa ou damasco. O pão começou a ser feito de milho ou de aipim. Mas os tradicionais kassler, chucrute, marreco recheado, repolho roxo, purê de maçã, tudo isso ele trouxe de lá. São comidas típicas de inverno. E a comida do inverno é pesada, por isso a fama da cozinha alemã. A gente não pode esquecer nossas raízes. A imigração alemã trouxe o joelho, o marreco recheado, isso faz parte da cozinha brasileira do Sul há 180 anos. É uma delícia, mas existe muito mais do que isso.
As festas de outubro no sul do país têm similaridade com as de lá?
É maravilhoso! Saúde! Essas festas são fundamentais para conservar a cultura brasileira dos imigrantes. Todas elas são fundamentais. Vocês criaram uma marca, um dia próprio, acho muito válido. Lógico, tem que ter um comitê para decidir. A Oktoberfest [festa típica de Blumenau – SC] hoje, por exemplo, tem uma equipe para decidir sobre a boa gastronomia alemã. Ninguém ganha com uma festa só para bêbados. As festas mantêm a alma viva das tradições, como se comia, como se vestia, essa parte visual, como a Festa Pomerana, que não é tão antiga, mas traz essa cultura para os jovens. Os jovens se vestem de Frida e Fritz com orgulho. Isso é uma maneira de preservar nossa história, e a gente não pode perder nossa história. Como vamos criar algo novo sem ter história. Como a BMW evoluiu tanto? A cada ano ela analisa os carros que lança. Com a cultura é a mesma coisa.