Pessoas
Christian Puglisi e sua identidade nórdica
Ítalo-dinamarquês, o chef Christian Puglisi desponta como um dos novos nomes da cozinha nórdica depois de René Redzepi, com quem trabalhou, e de Ferran Adrià (do extinto elBulli). Abriu seu restaurante, o Reale, em 2010 na capital Copenhagen em uma das áreas mais violentas da cidade. O objetivo era transformar o bairro por meio da gastronomia e parece que está conseguindo.
Em 2012 conquistou sua primeira estrela Michelin e em volta do restaurante, que tem apenas 40 lugares, começaram a abrir outros tipos de comércio como padarias e restaurantes.
Diariamente ele serve dois menus: o tradicional e o vegetariano. Ambos vêm com quatro pratos e uma sobremesa por 45 dólares. Todos os ingredientes são orgânicos. A cada duas semanas os pratos mudam para valorizar os ingredientes da época. Em toda mesa há uma gaveta que as pessoas abrem e escolhem se querem comer com colher, garfo, faca ou mesmo com a mão.
O reflexo de sua origem miscigenada aparece na cozinha. Há pessoas da Nova Zelândia, Canadá, Estados Unidos, Portugal, Rússia e Venezuela trabalhando ao seu lado. Mesmo tendo mudado para a Dinamarca ainda criança, a influência do país natal é muito forte. “É algo muito importante para a minha identidade. A política italiana é estúpida, a economia está horrível, o esporte não é tão bom quanto costumava ser, tudo tem algum problema, mas a comida continua ótima.”
Puglisi esteve no Brasil pela primeira vez para participar do Congresso Mesa Tendências entre os dias 5 e 7 de novembro em São Paulo.
No Brasil temos à disposição muitos ingredientes o ano todo, o que na Dinamarca não acontece. Como você encontra novos ingredientes ou maneiras de utilizá-los?
O que é interessante quando você usa a criatividade é trabalhar com restrições. Quando você tem muito, isso pode lhe causar problemas. No inverno eu tenho pouquíssima possibilidade. Eu uso cenoura e outros vegetais e trabalho muito porque tenho tempo disponível, uma vez que não tenho várias opções. Dessa maneira eu encontro formas interessantes de apresentá-los. E isso é algo de que eu gosto.
Você falou na sua palestra que encontrou mandioquinha no Brasil e adorou. Quais outros ingredientes que também chamaram sua atenção?
Eu experimentei várias coisas interessantes como os camarões pequenos. Adorei o palmito que experimentei no (restaurante) Mocotó. A experiência lá foi tão brasileira e muito interessante. Quando eu venho a um local e experimento pratos diferentes muitas vezes é difícil identificar os ingredientes mesmo com alguém me explicando, porque são sabores pouco habituais.
Qual razão pela qual a cozinha nórdica está em evidência atualmente?
Eu acho que é muito mais uma questão de momento e local certos. Claro que o Noma tem feito 90% do trabalho. A cozinha nórdica fala sobre a origem do modo de preparo e isso tem acontecido na Itália, na França, Espanha, Portugal, Brasil, China, mas não é o foco geral dos restaurantes de alta cozinha. Então nesse momento com crise financeira, problemas ambientais, as pessoas olham para trás para os verdadeiros valores. E isso quer dizer: boa comida e limpa. Os restaurantes estão olhando para isso agora. O que há 10 anos olhavam para a forma e as técnicas malucas, hoje o momento é outro e o Noma estava fazendo essas coisas. E isso não foi interessante para muitas pessoas no começo. Então as pessoas passaram a olhar esse conceito com outros olhos e isso se tornou um grande sucesso. A partir disso os cozinheiros começaram a ir para a Dinamarca frequentemente e os clientes também. Isso fez todo o mercado de restaurantes da região crescer.
E qual será o futuro da gastronomia?
O futuro será cada vez mais a comida perto das pessoas. Você não tem a oportunidade de reproduzir as técnicas da cozinha espanhola na vida cotidiana. Eu acho que o Mocotó é um grande exemplo do futuro. Porque lá tem uma ótima cozinha com alto nível, personalidade, valores corretos, e as pessoas gostam. O que torna mais interessante é que você pode reproduzir em casa. Então teremos uma forte influência não dos lugares, mas dos alimentos que temos em casa. Luxo, ouro, preços altos, diamantes, acabaram.
E o caso Mocotó é muito similar com sua história?
Exatamente. E eu amo a área onde eu estou inserido porque eu consigo me conectar. E você pode ver que o Rodrigo (Oliveira) está tendo um fantástico momento. Você pode ver que as pessoas que trabalham lá estão rindo. Eu acho importante, ter diversão na gastronomia. Há 10, 20 anos a gastronomia era imposta por chefs franceses, muito bons, mas que batiam nos funcionários, gritavam. Depois vieram os espanhóis, supertécnicos, mas muito difíceis de entender. Eu acho que no futuro os chefs vão se tornar pessoas mais “normais”.
*O jornalista viajou a convite da organização da Semana Mesa São Paulo.
Mais sobre o evento
Gastronomia mundial se voltará ao prato local
Ao longo do evento que reuniu mais de 100 chefs de várias partes do mundo, a principal discussão ficou sobre as origens e o futuro da gastronomia. Depois da fase Ferran Adrià e ingredientes locais, próximo passo será a culinária regional
Qual direção a gastronomia mundial seguirá? Durante o Congresso Internacional Mesa Tendências, realizado nos dias 5, 6 e 7 de novembro, em São Paulo, essa foi a principal indagação respondida pelos chefs e especialistas da área que passaram pelo auditório do Centro Universitário do Senac-SP. Alguns cozinheiros mais incisivos e outros de maneira involuntária apontaram o mesmo caminho: o futuro será a busca, não só por ingredientes, mas por pratos regionais, ligados principalmente ao local onde os chefs e restaurantes estão inseridos.
A 10.ª edição do evento contou com participação de mais de 100 chefs de várias partes do globo. O tema central era: raízes – de onde viemos e para onde vamos. Todos falaram sobre o resgate das origens e tradições. O rumo da gastronomia como uma evolução da atual valorização dos ingredientes locais, encabeçada mundialmente pela cozinha nórdica, que seguiu a fase Ferran Adrià na busca incansável de novas técnicas de preparo. No próximo ano inclusive o tema do congresso leva embutida a questão local: ‘A conexão essencial — o produtor familiar e a cozinha’.
Nos três dias de evento, passaram pelo palco de chefs brasileiros como Roberta Sudbrack (do restaurante que leva seu nome, Rio de Janeiro), Jefferson Rueda (Attimo, São Paulo) e Alex Atala (Dalva e Dito e D.O.M., ambos em São Paulo), além dos paranaenses Alberto Landgraf (Epice, São Paulo) e Manu Buffara (Restaurante Manu, Curitiba). Estiveram também os internacionais Magnus Nilsson (Faviken, Suécia), Christian Puglisi (Restaurante Relae, Dinamarca) e Rosio Sanchez (Noma, Dinamarca). A seguir, algumas considerações das principais aulas-show e palestras do evento:
“O fogo, o homem e o tempo”
A 10.ª edição do evento contou com participação de mais de 100 chefs de várias partes do globo. O tema central era: raízes – de onde viemos e para onde vamos. Todos falaram sobre o resgate das origens e tradições. O rumo da gastronomia como uma evolução da atual valorização dos ingredientes locais, encabeçada mundialmente pela cozinha nórdica, que seguiu a fase Ferran Adrià na busca incansável de novas técnicas de preparo. No próximo ano inclusive o tema do congresso leva embutida a questão local: ‘A conexão essencial — o produtor familiar e a cozinha’.
Nos três dias de evento, passaram pelo palco de chefs brasileiros como Roberta Sudbrack (do restaurante que leva seu nome, Rio de Janeiro), Jefferson Rueda (Attimo, São Paulo) e Alex Atala (Dalva e Dito e D.O.M., ambos em São Paulo), além dos paranaenses Alberto Landgraf (Epice, São Paulo) e Manu Buffara (Restaurante Manu, Curitiba). Estiveram também os internacionais Magnus Nilsson (Faviken, Suécia), Christian Puglisi (Restaurante Relae, Dinamarca) e Rosio Sanchez (Noma, Dinamarca). A seguir, algumas considerações das principais aulas-show e palestras do evento:
“O fogo, o homem e o tempo”
A chef Roberta Sudbrack falou sobre seu principal instrumento de trabalho, o fogo. Abordou como ele é importante na história alimentar e quais são as melhores maneiras de utilizá-lo. Citou ainda vários pratos brasileiros cujo elemento importante é o fogo. “Na nossa cozinha ele está sempre presente. Como o preparo do barreado que é um processo super interessante,” disse. Sobre a tendência da gastronomia foi enfática: “todo mundo tem vontade de voltar atrás”. Assim como outros chefs, ela demonstrou alguns preparos no palco, dentre essas iguarias estava uma farinha de banana, um molho à bernese e um ojo de bife.
Ingredientes nordestinos
Fruta de macaíba, umbu, gogoia, facheiro, foram alguns dos ingredientes apresentados pelo chef Claudemir Barros (Wiella Bistrô , Recife). As raízes e folhas do sertão são a fonte de inspiração da gastronomia do chef. Para ilustrar, mostrou um vídeo com o preparo de um doce de facheiro (uma espécie de cactos) com coco que lembra o de abóbora. Na mesma linha, a chef Nilza Mendonça (Senac-CE, Fortaleza) trouxe outra espécie de cactos, a palma forrageira, que é muito utilizada para a preparação de vários pratos regionais, principalmente na cultura mexicana.
Cogumelos amazônicos
Diretamente de Manaus, o chef catarinense Felipe Schaedler (Banzeiro) trouxe o resultado de uma pesquisa que ele faz há um ano e encantou até Alex Atala. Felipe falou sobre os cogumelos comestíveis amazônicos. Segundo ele, são 34 espécies descobertas até o momento. Alguns são exclusivos da região, como o lentinula raphanica (o primo nobre do shiitake), e outros presentes em mais países como o phallus (também chamado véu de noiva). Para ilustrar o uso do ingrediente, fez uma receita com cogumelos nativos, usados desde a época dos índios e abandonado depois de um tempo por influência dos portugueses que tinham medo de serem venenosos.
Paraná e sua gastronomia
Manu Buffara participou pela primeira vez do Mesa Tendências em São Paulo e trouxe muito de sua pesquisa com ingredientes e comidas paranaenses. Apresentou vários tipos de batatas (que chegam a 40, segundo ela), frutas, palmito, frutos do mar, todos nativos do estado. Falou ainda do trabalho de produção de mel com abelha nativa paranaense em Guaraqueçaba. “Esses produtos têm o mesmo valor para o Paraná que o foie gras e o kobe têm para os franceses e japoneses,” disse.
Raízes japonesas
Diretamente do Japão, a chef e pesquisadora Mari Hitara levou ao Mesa Tendências um pouco sobre sua pesquisa de raízes comestíveis. Wasabi, kuzu, raiz de lírio e cará foram algumas variações apresentadas por ela. No país asiático, comer raízes, cozidas ou cruas, é um dos hábitos mais típicos dos japoneses.
A culinária caipira
Com um sotaque de erre puxado do interior, o chef Jefferson Rueda (Attimo) encantou a todos com uma aula-show cujo tema era: ‘prosa, pinga e frita’. Ele começou a apresentação com um vídeo mostrando como busca inspiração para a criação dos seus pratos nas receitas tradicionais do interior do país. Para ilustrar, preparou um porco na panela que se caramelizava quando jogava água (pinga) e deixava fritar um pouco. Logo depois serviu um almoço inspirado para todos os participantes do evento com um porco a pururuca e tutu de feijão.
60% local 40% global
Com essa proporção, a chef dinamarquesa Trine Hanhemann (Hanhemann Projects) falou das soluções sustentáveis e produtos orgânicos como fonte de produtos para a gastronomia mundial. Acrescentou ainda que é necessário usar 80% planta e 20% animal nas receitas. Ensinou o preparo de um pão de centeio, o alimento do cotidiano do dinamarquês. Pela primeira vez no Brasil, encontrou couve e se encantou pelo produto.
O resgate do mel
Antes de existir o açúcar, o mel era utilizado para adoçar o paladar na gastronomia mundial. Para falar do resgate desse ingrediente milenar, o chef Francês Philippe Gobet (École Lenôtre) preparou um tradicional pain d’épices com mel de uma abelha cujo pólen é retirado da flor de laranjeira. O pão doce foi criado no século 13 na Bélgica. “O casamento desse pão é perfeito com foie gras, principalmente no Natal,” disse. Segundo Gobet, no Brasil o consumo de mel por habitante é de 100 gramas por ano. Terminou sua fala dizendo que o Guia Michelin tem que vir ao Brasil.
Volta às origens
Como uma tendência ao futuro da gastronomia, o chef Christian Puglisi (Reale, Dinamarca) falou sobre a complexidade na simplicidade. Disse que as cozinhas dos restaurantes se tornaram muito afetadas pelo salão e acrescentou que a volta às origens é o futuro. “Os chefs dizem o que você deve fazer e como deve comer. Eu digo que o cliente é quem deve escolher,” disse. Logo depois da palestra, o Bom Gourmet fez uma entrevista exclusiva com o chef.
A morte acontece
Um capítulo à parte, sempre é o momento em que Alex Atala fala. Ele ficou com o grand finale do evento e trouxe ao Mesa Tendências a história de 15 anos do D.O.M. e qual é o caminho que ele deve seguir. Mas antes de começar qualquer preparo de prato, falou sobre a polêmica ocorrida na sua apresentação no simpósio MAD, na Dinamarca em agosto deste ano, quando matou uma galinha na frente da plateia. “Eu matei uma galinha e muita gente não gostou. Mas muita, muita, muita gente gostou. Quero dizer que a morte acontece. Mesmo para o vegano ou vegetariano, a morte acontece. A Amazônia está morrendo e nós chefs somos corresponsáveis por usar os ingredientes. Desculpa falar isso, mas era um grito entalado na garganta,” disse ele aplaudido pelo público.
Sobre o mesmo tema, algumas horas antes, o chef Magnus Nilsson (Fäviken, Suécia, o primeiro restaurante abaixo do Circulo Polar Ártico) também abordou o tema da morte da cozinha na palestra “uma licença para um carnívoro”. Exibiu o filme (chocante, diga-se de passagem) francês da década de 1940, Le Sang Des Bêtes (o sangue dos animais, em tradução livre), em que retrata o abate de vários animais. Segundo ele, as pessoas perderam a conexão com a natureza e se esqueceram que a carne que comemos era um ser vivo. “De forma egoísta os matamos para nós mesmos. E na maioria das vezes desperdiçamos essa comida”, disse. Para ele, todos deveriam saber como os animais são mortos para tratar melhor o alimento.
Com um discurso acalorado, o chef André Mifano (Vito, São Paulo) também falou sobre a produção desenfreada de comida no mundo. A palestra foi intitulada “um cozinheiro apocalíptico: técnicas de cura para o fim do mundo”.