Produtos & Ingredientes
Itália passa por revolução ao produzir massas com trigo 100% nacional
A cerca de 800 metros acima do nível do mar, nas Dolomitas, Riccardo Felicetti, membro da quarta geração de uma família fabricante de massas, lidera uma revolução silenciosa no setor em seu país, a Itália.
Graças a inovações que introduziu como CEO da empresa fundada por seu bisavô, em 1908, o Pastificio Felicetti é uma maravilha do século XXI, tinindo graças a uma série de computadores e um pequeno exército de robôs aparentemente autônomos que manipulam pallets de penne, rigatoni e espaguete com velocidade e precisão incomparáveis.
Porém, a verdadeira mudança que Felicetti e outros pequenos empresários do ramo estão criando é em um nível mais fundamental, com o uso do trigo duro cultivado exclusivamente na Itália.
E a decisão já gera resultados em termos de sabor e das vendas, pois já se beneficiam do interesse, cada vez maior, em variedades de terroir, além de reforçar o orgulho nacional em uma época em que ele se faz necessário.
O Italico, um restaurante recém-inaugurado em Palo Alto, na Califórnia, montou seu cardápio em cima de massas de trigo italiano e o chef nova-iorquino Mark Ladner vai usá-las na Pasta Flyer, a cadeia que pretende abrir depois que deixar o Del Posto.
Quem abre o pacote pode achar, ao ler na embalagem, “100% trigo duro, produzido na Itália”, que todo o grão utilizado ali foi cultivado naquele país, mas a verdade é que, quase sem exceção, as empresas usam uma mistura na proporção de 70% nacional para 30% importado.
O que não é novidade: Felicetti conta que, no início do século XX, a nação importava 80% do trigo duro da Rússia. Após a Revolução, entretanto, a Itália passou a importar o produto da América do Norte e, mais tarde, da Austrália e outros países.
Os motivos têm a ver tanto com o apetite como com a geografia. Por ano, um italiano consome, em média, 27 kg de massa (o norte-americano consome 9 kg) e, mesmo com os agricultores locais cultivando uma quantidade enorme da variedade, não conseguem atender à demanda interna do setor.
Embora as companhias maiores não consigam subsistir só com o trigo italiano, para as menores a opção é cada vez mais atraente.
Felicetti começou sua cruzada pelo trigo nacional há 16 anos, inspirado em outra especialidade italiana: a grapa. No início dos anos 70, os destiladores locais, que há tempos produziam versões indistinguíveis da bebida a partir do bagaço da uva, passaram a selecionar as variedades com mais cuidado.
“Teve uma época em que faziam um tipo só de grapa; agora é que tem todos esses varietais, Chardonnay, Pinot Nero etc. Por volta de 2000, comecei a questionar se não daria para fazer algo semelhante com o macarrão, ou seja, em vez de usar uma mistura de grãos importados e nacionais, apostar em grãos de uma única variedade, de um local específico. Claro que seria muito mais complicado, mas ganharia um valor ímpar e uma vantagem competitiva única no mercado”, diz ele.
Em 2004, depois de um sem-fim de testes para determinar quais as variedades de trigo se davam melhor em determinadas regiões, o Pastificio Felicetti começou a produzir uma linha chamada Monograno, ou “um grão”. E as observações no pacote lembram muito a avaliação de um sommelier: “Notas de pão assado na pedra, manteiga e brotos de bambu” ou “Manteiga de amendoim e tâmara vermelha”.
O mercado
O Pastificio Felicetti produz cerca de 400 toneladas de massas Monograno por ano, o que corresponde a 15% do total. Em 2014, o Spaghettoni, feito a partir de uma cepa de trigo chamada Matt, cultivado na Apúlia, no sul da Itália, ganhou o Prêmio Sofi da Specialty Food Association (um dos mais importantes do ramo alimentício) na categoria massa, arroz ou grão. Outra variedade Monograno ganhou a mesma honraria em 2016.
O Pastificio Felicetti produz cerca de 400 toneladas de massas Monograno por ano, o que corresponde a 15% do total. Em 2014, o Spaghettoni, feito a partir de uma cepa de trigo chamada Matt, cultivado na Apúlia, no sul da Itália, ganhou o Prêmio Sofi da Specialty Food Association (um dos mais importantes do ramo alimentício) na categoria massa, arroz ou grão. Outra variedade Monograno ganhou a mesma honraria em 2016.
Em 2013, a empresa começou a usar somente trigo italiano para preparar todas as massas, embora Riccardo Felicetti faça questão de enfatizar que tal decisão teve mais a ver com a agilização da produção do que com a preocupação com a qualidade dos ingredientes.
“Não é nem que a gente ache que o trigo duro italiano seja o melhor, mas a verdade é que facilita muito o controle da cadeia de fornecimento”, explica ele.
A Rustichella d’Abruzzo, pequena operação da região central da Itália, também lançou uma linha de massas que só usa o trigo nacional chamada PrimoGrano, ou “primeiro grão”. Elas são feitas a partir de três variedades: San Carlo, Varano e Mongibello, cultivadas em Abruzzo.
A intenção do dono da empresa, Gianluigi Peduzzi, era fazer da PrimoGrano um evento especial e único para comemorar os 80 anos de atividade do negócio, em 2004, mas a recepção foi tão entusiasmada que decidiu mantê-la.
Atualmente a produção da linha chega a 100 toneladas anuais, volume que, segundo Peduzzi, vinha crescendo de dez a quinze por cento ao ano. Ele explica parte do interesse por causa do sabor e da textura. “É mais macio e saboroso; tem gosto de pão”, afirma.
A Pasta Mancini, na região de Marche, levou a ideia ainda mais longe, não só usando apenas o trigo italiano, mas cultivando-o também. Sua pequena fábrica, construída em 2007, fica no meio de um de seus trigais. “Em um mundo onde o grão de trigo viaja, em média, 6 mil km antes de virar macarrão, temos orgulho de dizer que, no nosso caso, não há separação entre os campos e a fábrica, mas faço questão de frisar que somos exceção”, escreveu o porta-voz da empresa, Lorenzo Settimi, em um e-mail.
Até um dos maiores fabricantes de massa da Itália, a Barilla, já adotou a prática, ainda que em pequena escala: em 2014, a empresa começou a usar só o trigo duro cultivado no sul da Itália para sua linha premium, a Voiello.
A razão foi muito simples: “Pela sustentabilidade e o uso da energia. Evitamos ter que trazer o trigo de lugares distantes porque isso encarece o produto e prejudica o meio ambiente”, explica o porta-voz da Barilla, Luca Di Leo.
E prossegue, afirmando que o uso da matéria-prima italiana traz mais benefícios. “Acho que ter algo feito aqui representa aquele ‘algo a mais’, principalmente na Itália. Em parte por motivos patriotas, especialmente em uma época de economia fragilizada, com gente perdendo o emprego, é muito bom poder dizer que produzimos macarrão somente com o trigo duro local, ajudando nossos agricultores.”
A iniciativa parece estar se beneficiando do movimento locávoro, que de uns anos para cá vem se mostrando mais vibrante do que nunca, graças, em parte, ao lema “Km 0”, abreviação de zero quilômetro.
E uma lei futura pode beneficiar ainda mais essas massas: no primeiro semestre do ano, a Comissão Europeia deve começar a exigir que as embalagens dos alimentos mostrem a origem do ingrediente principal, se este for diferente do país em que o produto foi feito.
Serviço
As massas produzidas somente com trigo italiano podem ser encontradas em lojas especializadas (nos EUA): a da Felicetti Monograno pode ser adquirida no eataly.com e na Rainbow Grocery, em São Francisco; em Nova York, o PrimoGrano da Rustichella d’Abruzzo está à venda nas lojas Dean & DeLuca e o macarrão da Mancini, na Il Buco Alimentari e Vineria.
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