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Cafeterias, baristas e produtores se unem para deixar o café brasileiro ainda mais gostoso
Insinua-se, tal como a fumaça que sai da chaleira fervente, um novo momento para o café especial no Brasil. A proximidade cada vez maior entre donos de cafeteria, mestres de torra, baristas e cafeicultores tem feito a qualidade sensorial da bebida melhorar e surgirem cafés dos próprios produtores e novas estratégias para vendê-los.
Como nem sempre o cafeicultor tem a oportunidade de provar seu produto torrado por um mestre de torra e extraído por um barista, o acompanhamento dos profissionais da ponta final no dia a dia dos produtores é um processo ganha-ganha: o produtor tem um retorno da bebida potencial do seu cafezal, e o mestre de torra e o barista conhecem a fundo como aquele fruto foi tratado e como extrair o melhor do grão.
Essa transformação está nos pequenos municípios também: São Gonçalo do Sapucaí, com 25 mil habitantes, é um deles. Situado na Mantiqueira de Minas, uma das regiões cafeicultoras mais premiadas do Brasil e que produz café arábica há um século, tem selo de indicação geográfica desde 2011. De lá para cá, processos, qualidade e a realidade do produtor mudaram.
“A forma como o café é colhido e seco impacta muito no sensorial. Se colhido no ponto de maturação errado e seco de forma descuidada, perde-se todo o potencial que o café poderia apresentar na xícara”, explica Maria Mion, barista e instrutora da Specialty Coffee Association (SCA), órgão internacional cuja escala de pontuação é a padrão para análise de cafés. Maria tem viajado a São Gonçalo do Sapucaí, sul de Minas Gerais, nos últimos dois anos para acompanhar e aprender com os cafeicultores da região.
Assim como Maria, outros profissionais “da cidade” vão à roça entender por quais processos passa o café que vendem. Junto dos cafeicultores, torram e provam os cafés da safra, descrevem as notas encontradas, analisam as melhorias necessárias para tornar o grão em uma bebida mais limpa e desenham estratégias para alcançar um novo público. A parceria é um passo importante para que o café especial de pequenos e médios produtores brasileiros seja consumido também em casas (e cafeterias) do país.
Entre 2012 e 2016, o crescimento do consumo de cafés especiais cresceu em média 20,6% por ano no Brasil. O mercado interno ainda representa pouco ou quase nada para os cafeicultores brasileiros: apenas 2,8% da produção nacional — a maior parte do café especial brasileiro vai para países como Austrália, Estados Unidos e Japão.
Na Fazenda Capadócia, que produz anualmente 1.500 sacas entre café commodity e café especial, aumentou de zero a 80% a produção de cafés especiais entre 2010 e 2018. Sob responsabilidade de Augusto Borges Ferreira, uma em cada dez sacas de cafés especiais da Fazenda Capadócia vai para o mercado interno. Augusto assumiu a fazenda aos 18 anos, em 2010, e sua primeira decisão foi contratar um engenheiro agrônomo para analisar e corrigir a terra dos 35 mil pés de café, que multiplicou para 80 mil pés em produção (e quase o dobro de mudas e cafezais jovens). Passou a fazer colheita seletiva manual, construiu um terreiro suspenso e uma estufa e investe em tecnologia no processo de beneficiamento, como um termômetro eletrônico que controla automaticamente a temperatura do secador.
Quanto mais cuidados na produção e beneficiamento do fruto, maior a chance de ter qualidade na xícara. O efeito é dominó: “Alguns produtores geralmente migram do commodity para o especial quando percebem que um vizinho da região o fez e deu certo. Algumas produtoras, como por exemplo no Norte do Paraná, tiveram incentivo com ensino e treinamento do Emater-PR”, explica Fabíola Jungles, mestre de torra e Q-Grader (provadora de café qualificada para avaliar a bebida dentro dos parâmetros da SCA).
Fabíola é a idealizadora do Projeto Consolida, uma marca em que todas as profissionais envolvidas são mulheres: quem produz, torra, analisa, ilustra e entrega. A origem do café muda a cada mês e a embalagem, de 250 gramas, custa R$ 35. “Além do nome da produtora, a gente procura destacar o “como”: quem participa da produção, a história de vida dela, quanto que a propriedade produz, percalços, dificuldades e conquistas. É importante as pessoas verem o café especial como um alimento que é produzido pelo esforço de muitas pessoas”, diz Fabíola.
O discurso que encontra eco no trabalho de Maria em educação sensorial para consumidores. “As pontuações da SCA não deveriam ser uma preocupação do consumidor e sim se o café tem qualidade, se agrada sensorialmente quem está consumindo. Temos excelentes cafés de 82 pontos”, destaca Maria, “cada um com um perfil sensorial diferente e de acordo com o repertório do consumidor. Para usar um exemplo do universo do vinho: eu posso não ter repertório para provar um vinho complexo, de alta pontuação”, completa.
Vendendo cafés especiais
Com tantas possibilidades de mudança de processos dentro da fazenda, Maria procura desconstruir a ideia de que cafés produzidos na mesma região sempre expressam perfis sensoriais parecidos. “Participei de uma mesa de cupping com café de 11 produtoras mulheres e sete produtores homens na Associação de Produtores Rurais do Alto da Serra (APAS). Encontramos cafés super frutados, cafés com notas de noz e de cacau e até cafés com notas florais e de chá preto”, exemplifica a barista.
Outro exemplo de mudança de processo que impactou em qualidade sensorial foi na Honey & Coffee, do paulista Alessandro Hervaz, de 41 anos. Sandrão, como é conhecido na cidade, é a segunda geração a trabalhar com café — seu pai comprou a Fazenda Fortaleza em 1993 em São Gonçalo do Sapucaí. Além de cafeicultor, é apicultor, daí o nome da marca.
Alessandro assumiu a fazenda em meados dos anos 2000, quando comprou mais terras e começou experiências com cafés especiais: em 2016, fez o primeiro teste com o processo honey coffee, uma dupla fermentação dos grãos que acentua a doçura na xícara. No ano seguinte, conquistou o oitavo lugar em um concurso da Cooperativa Central de Cafeicultores e Agropecuaristas de Minas Gerais (Coccamig) com cinco sacas de um café passado por esse processo. Outro café da Fazenda Fortaleza se destacou no mesmo ano, no concurso Best Cup da Carmo Coffees, exportadora do Sul de Minas, em que competiu com cafés do Brasil inteiro e ficou em sétimo lugar. Seu lote foi cotado a R$ 5.500 a saca.
Tamanha complexidade exige rótulos mais detalhados e fazer o consumidor entender isso. “Marketing é 50% do negócio. Contratei designer para fazer camisetas da fazenda, vendo café por Instagram. Coloquei na minha meta estar entre os dez melhores em todos os concursos que participar esse ano. Essas colocações são uma chancela e abrem portas para compradores gringos”, comenta Augusto. Maria concorda: “Os concursos dão visibilidade para o trabalho não só do produtor que conquistou as melhores colocações, mas de toda a região. É um estímulo para que continuem produzindo cafés de qualidade”.
Foi o que aconteceu com a recém-criada Fazenda Fortaleza dos Borges, que lançou seu primeiro café, o Amaranta, no dia das mães de 2018. A escolha de Patrícia Borges para o nome foi fácil: é o mesmo de sua primogênita. Ela, que é a terceira geração da família produtora de café, não esconde o orgulho de suas conquistas: a saca de juta que leva a logo da marca está emoldurada no corredor de sua casa em São Gonçalo do Sapucaí. Em 2017, uma amostra da Fortaleza dos Borges alcançou o terceiro lugar do Coffee of the Year, na Semana Internacional do Café (SIC) em Belo Horizonte.
No terreiro de café da Fazenda Fortaleza dos Borges, os frutos mais maduros da Coffea arabica colhidos à mão secam no pátio de cimento delimitados por uma lona enrolada. “Para não misturar com café ruim”, fala Patrícia em um tom mais alto para provocar o irmão Júnior, que seca seu café commodity no mesmo terreiro. O capricho vai além: quem mexe no café diariamente para secá-lo ao sol deve estar de meias para não esmagar o fruto e expor o grão.
Primeiros passos
Também a terceira geração a trabalhar com café, Gilson Soares passou a fazer café especial a partir de 2008. Junto da esposa Lucimeire Martins Soares, produz 300 sacas ao ano como pequenos produtores com recursos e tempo divididos em outras tarefas — Meire, como é conhecida, faz marmita para os trabalhadores da região. Contratar mão de obra e investir em tecnologia não é algo tão acessível ao casal: Meire e a irmã fazem a colheita seletiva manual em apenas um lote, enquanto nos demais cafezais a colheita é por mão de obra terceirizada com a derriça, em que os colheitadores puxam todos os grãos — do verde ao seco. Os cafés da colheita seletiva passam por secagem em terreiro suspenso, enquanto o segundo, em terreiro em pátio.
Se o café não secar antes da chuva ou antes que uma nova leva de café fresco precise ocupar a área, os grãos passam pelo secador à lenha, cuja temperatura precisa ser controlada dias a fio, sem interrupções. Gilson montou uma cama no galpão para poder acompanhar hora a hora o termômetro e não deixar passar dos 60 graus C. “Fiz desconfortável de propósito, senão a gente dorme mesmo”, conta.
Atualmente, 50% da produção de Gilson e Meire é de café especial e vem de um lote já “antigo” a melhor pontuação atingida: os pés de catuaí plantados em 1980 renderam um café de 88 pontos, mesmo sem correção de solo ou poda. “Às vezes acontece de um lote sem muita mudança beber melhor que o de seletiva manual”, ri o vizinho Augusto. Mas os produtores sabem que é melhor não abusar da sorte.
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