Produtos & Ingredientes
Legislação ultrapassada atrapalha a produção artesanal no Brasil
A apreensão de 160 quilos de queijos e linguiças artesanais no estande da chef Roberta Sudbrack no Rock in Rio, no último fim de semana, reacendeu a polêmica sobre as regras do Selo de Inspeção Federal (SIF) impostas aos pequenos produtores. Nos dias seguintes, o órgão fez mais apreensões por um total de mais de 600 kg.
Hoje a legislação federal não distingue produtores locais da grande indústria alimentícia. Todos precisam atender os mesmos níveis de exigência sanitária, normalmente desproporcionais à capacidade produtiva dos pequenos. A consequência disso é que muitos produtos de qualidade, únicos do ponto de vista gastronômico, acabam na ilegalidade ou proibidos de serem comercializados fora dos estados onde são produzidos. Foi o que aconteceu com os queijos e linguiças da chef Sudbrack.
Neste caso, os produtos em questão tinham vindo de Gravatá, no interior de Pernambuco, e haviam sido aprovados pelo órgão sanitário do estado. Como os queijos e linguiças foram produzidos em Pernambuco, mas seriam vendidos no Rio de Janeiro, o SIF era necessário. Uma pergunta importante é: por que um produto que tem autorização sanitária em um estado, apresenta risco à saúde da população de outro?
Lei é de 1989, mas veio de 1950
O SIF é vinculado ao Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal, do Ministério da Agricultura. Apenas com ele os produtos de origem animal (além da carne, também o leite, derivados, ovo, mel e cera de abelha) podem ser vendidos no território brasileiro e no exterior.
A lei que dá origem à legislação sanitária brasileira é antiga, de 1950. Em 1989 o modelo de inspeção foi federalizado e passou a ter três níveis: municipal (quando o produto for produzido e vendido do município), estadual (quando o comércio for entre municípios do mesmo estado) e federal (caso o produto seja vendido entre estados ou no exterior).
O que pensam os produtores
Ninguém acha que não deveria existir controle sanitário para os produtos de origem animal, nem produtores, nem comerciantes, nem chefs de cozinha. Afinal, é claro que se trata de um produto de alto risco, que precisa ser inspecionado para garantir a segurança alimentar da população. “Porém essa legislação precisa ser coerente e atualizada. A lei precisa acompanhar a evolução. Não questionamos as conquistas que a lei trouxe para o segmento, mas ela precisa de adequações à produção artesanal”, afirma o mestre-queijeiro Bruno Cabral, pesquisador e especialista no assunto.
Na ocasião da apreensão no Rock in Rio, a Vigilância Sanitária afirmou que os produtos não se encaixavam com a legislação federal e representavam um risco à saúde do público. Nas redes sociais, a chef Roberta Sudbrack afirmou que os produtos estavam no prazo de validade e criticou o descarte dos alimentos, que foram jogados no lixo e inviabilizados para consumo com produtos químicos.
Para conseguirem vender seus produtos a outros estados, alguns produtores mais organizados recorrem ao selo Sisbi, regulamentado por órgãos sanitários de estados que comprovaram terem competência de fiscalização equivalente ao governo federal. É assim que os produtores de queijo feitos com leite cru, como o coalho ou canastra, conseguiram a exceção de serem comercializados em outros estados. É importante ressaltar que o queijo da canastra é considerado um produto cultural reconhecido pelo Iphan, o que ajudou a conseguir essa flexibilização em Minas Gerais.
Métodos de fabricação tradicionais são restritos
A legislação brasileira é rigorosa também em relação ao método de produção de queijos e embutidos. Enquanto na Itália o queijo parmigiano reggiano, por exemplo, descansa um ano sobre prateleiras de madeira, material que permite o desenvolvimento de comunidade microbianas, no Brasil as prateleiras de inox ou fibra de vidro são as mais recomendadas pelas normas sanitárias.
Na Salumeria Monte Bello, que produz embutidos, curados, linguiças e outros produtos artesanais no alto da Serra da Graciosa, em Quatro Barras, todos os produtos são feitos com tripa natural, que mofa mais rápido do que a sintética, o que confere mais sabor aos produtos. Mas para serem comercializados dentro da legislação sanitária, a equipe da salumeria precisa retirar o recheio das tripas e embalar apenas o recheio à vácuo antes de revende-los. “Adoraríamos levar para o mercado o produto com a presença do mofo, seguindo os métodos originais que dão mais sabor. Mas a lei nos orienta a utilizar embalagem a vácuo”, explica Lai Pereira, gerente comercial da Monte Bello.
Modernização da lei
A pressão pela modernização da lei, com a diferenciação entre pequenos produtores e a indústria, voltou ao centro do debate em março deste ano, após o escândalo das fraudes no processamento de carnes na Operação Carne Fraca. Na ocasião, o governo de Michel Temer atualizou as regras do Riispoa (Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal), endurecendo punições contra empresas que cometem irregularidades, prevendo a perda do selo SIF em caso de reincidências gravíssimas.
Porém em relação aos pequenos produtores, o decreto menciona apenas que existe “distinções” em relação à indústria, mas afirma que os detalhes ao tratamento diferenciado seriam definidos por “normas complementares”. No início de setembro, o ministério da Agricultura anunciou um novo modelo de inspeção sanitária em 60 dias, sem maiores detalhes.
Para não perderem o bom momento de debate sobre o assunto, os lojistas de queijos artesanais organizaram recentemente a Comerqueijos (Associação de Comerciantes de Queijos Artesanais Brasileiros). Embora já possuam estatuto, os associados ainda precisam formalizar a associação, segundo o mestre-queijeiro Bruno Cabral. No entanto, o grupo já iniciou um movimento de pressão em Brasília pelas demandas da produção artesanal em reunião recente com o ministro da Agricultura, Blairo Maggi.
LEIA TAMBÉM