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Muito antes da COP-30 ou do crescente interesse dos ambientalistas pela Amazônia, a maior floresta tropical do mundo já atraía empresários de outros países para a região localizada no estado do Pará. Um desses pioneiros foi Henry Ford, o lendário empresário norte-americano que revolucionou a indústria automobilística com o ideal da produção em massa.
Para se firmar ainda mais no mercado, a empresa Ford estava em busca de uma fonte própria de borracha para as produção de pneus. O empresário até tentou utilizar a genialidade do inventor Thomas Edison para desenvolver uma borracha sintética, mas percebeu que era refém da matéria-prima amazônica.
Inovador, Ford foi muito além da extração da borracha necessária para produção em série dos carros. O americano teimou em estabelecer uma cidade no Brasil e foi assim que, em 1928, nasceu a Fordlândia, um distrito situado às margens do rio Tapajós, localizado no município de Aveiro (PA). Para o ambicioso empreendedor, a ideia parecia perfeitamente viável. Afinal, sua empresa estava muito bem financeiramente e colhia o sucesso de ter lançado no ano anterior o Ford Model A.
O objetivo do empresário era estabelecer o cultivo de seringueiras, árvores que ainda não haviam sido totalmente domesticadas. Isso o colocaria na frente dos concorrentes. Mas dificuldades surgiram no caminho e afundaram o projeto.

Queda de braço na República Velha
O primeiro registro de contato entre Henry Ford e o Pará surgiu há quase cem anos, em setembro de 1925. O então governador do Pará, Dionysio Bentes, sabia do interesse do americano pelas terras amazônicas e defendeu no Congresso Legislativo do Estado a possibilidade de uma concessão gratuita à companhia automobilística.
“O Pará e o Brasil inteiro lucrariam muitíssimo mais que o próprio Henry Ford”, defendeu Bentes em discurso no ano 1928. “Interessar o primeiro bilionário do mundo que, no seu país, recusou mais de uma vez posição de destaque na alta política para se entregar exclusivamente ao fabrico de automóveis e caminhões para as multidões; que nunca procurou esmagar a ninguém dentro de sua profissão, como Carnegie, Rockefeller e outros fizeram, é engrandecer, é fortalecer o nosso ativo - a riqueza econômica de qualquer nação.”
O discurso de Bentes foi registrado no livro “A Concessão Ford e o governador Dionysio Bentes”. A obra - datada de 1928 - disponível na biblioteca pública Arthur Vianna, em Belém (PA), foi criada com o intuito de defender o político e o projeto da Fordlândia, mas também expõe a queda de braço entre o governo estadual e os opositores.
O autor do livro, Tito Livio Barreiros, se propunha a livrar o governador do Pará de acusações de “clandestinidade” e de ataque à “soberania” vindas dos adversários políticos. "Nada mais positivo e sincero do que pôr aos olhos dos brasileiros, de Norte a Sul, as incisivas contraditas às palavras que o senador Antonino Emiliano de Sousa Castro [...] disse e escreveu contra o maior governador que já tivemos”, escreveu Barreiros.
Segundo o mesmo registro histórico, Ford teria direito a 10 mil hectares de terras devolutas para cada 50 contos de capital a empregar. Nos valores atuais, isso significaria que o magnata ganharia terras a cada R$ 1,25 milhão que faturasse. Ele também teria direito à “isenção e todas as facilidades para uma atuação econômica intensa”.
Henry Ford teve dificuldades para impor "sonho americano" na selva
Com as terras em mãos, no entanto, o destino do sonho de Henry Ford foi marcado por dificuldades que o levaram ao fracasso. Autor do livro Fordlândia. Ascensão e Queda da Cidade Esquecida de Henry Ford na Selva, o historiador Greg Grandin descreve a empreitada como uma guerra por procuração.
“Ford representava vigor, dinamismo e a energia pulsante que definiram o capitalismo americano no início do século XX; a Amazônia incorporava quietude primordial, um mundo antigo que até então se provou inconquistável”, escreve Grandin. À época, um artigo da revista Time, afirmou que Ford não sossegaria enquanto não industrializasse todo o bioma. Além disso, o empresário queria que sua cidade brasileira fosse uma representação do "sonho americano".
Protestante, Ford cobrava que funcionários fossem aplicados, com estilos de vida moderados e que respeitassem as leis dos Estados Unidos. Segundo o livro de Grandin, quando o empresário tomou conhecimento que os funcionários de Fordlândia estavam fazendo festas regadas a álcool, ele quis replicar a lei seca americana e transformou a proibição em uma diretriz da empresa em território brasileiro.
“Mesmo que fosse um país estrangeiro, creio que isso estava completamente em linha com a política da Ford e ela seria imposta naquele país de qualquer forma”, cravou Ernest G. Liebold, secretário pessoal de Ford, em entrevista a um centro de pesquisas da montadora na década de 1950. “Se permitíssemos o uso promíscuo de álcool em nossa plantação, os funcionários poderiam sair do nosso controle em certas ocasiões.”
A medida deu errado e ajudou a criar mais tensão, afinal a região era repleta de bares e bordéis. E, mesmo quando fechados, os trabalhadores encontravam alternativas, viajando para outros locais para conseguirem beber.
Aos poucos, os brasileiros, chamados pelos funcionários da Ford de “caboclos”, se irritaram com as sirenes, marcação de ponto e com outras regras de controle. O american dream de Henry Ford não foi bem traduzido pela cultura local.
Como se isso não bastasse, o próprio cultivo das seringueiras não estava funcionando, além dos custos da operação e do transporte serem muito caros. Em 1987, uma pesquisa realizada pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) descreveu que, em Fordlândia, as plantações foram “severamente atacadas” pelo “mal das folhas”.
Ou seja, as seringueiras de Ford eram atacadas pela própria natureza, com um fungo que reduzia a produtividade e desfolhava as seringueiras. Um terror para o homem que sempre almejou uma grande escala de produção.
Fordlândia, 80 anos depois
Em dezembro de 1945, dois anos antes da morte de Ford, o projeto foi oficialmente encerrado após um acordo entre a montadora e o governo federal. Neste ponto da história, a empresa já havia encontrado outra saída para o problema da borracha para produção de pneus.
Com a saída em definitivo dos funcionários, os galpões e as máquinas da montadora foram abandonados, dando ares de cidade fantasma, característica que permanece em Fordlândia até hoje. As terras foram incluídas em uma mudança legislativa nos anos 1970, tornando-se a “região rural de Aveiro”. Vinte anos depois, uma petição ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) pediu o tombamento do local para a preservação do patrimônio material. Mas, desde então, esse pedido jamais avançou.
Procurado pela reportagem da Gazeta do Povo, o instituto nacional não prestou informações atualizadas sobre o local, que segue sem ser reconhecido como patrimônio tombado. Mesmo assim, segundo dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados no censo de 2010, o distrito contava com 1.200 habitantes. A estrutura da sede da Ford e a icônica caixa d'água também seguem de pé, embora enferrujados e sem o logo da empresa.
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