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Ter a liberdade de sair de casa três vezes por semana, por no máximo seis horas seguidas, sob vigilância. O pedido — que bem poderia ser de alguma defesa de réu ou condenado com tornozeleira eletrônica em busca de um benefício extra em uma progressão de pena para regime de prisão semiaberto ou domiciliar — é, na realidade, feito à Justiça por um dos maiores combatentes ao crime organizado na história recente do Brasil.
Depois de condenar pelo menos 114 traficantes internacionais de drogas — entre eles Fernandinho Beira-Mar, uma das lideranças máximas do Comando Vermelho na cadeia — a uma pena total de mais de 920 anos de prisão e aprender mais de 400 imóveis, 150 aviões e 890 veículos de luxo e caminhões, o juiz federal Odilon de Oliveira vive, ironicamente, como um prisioneiro trancado dentro de casa em Campo Grande (MS).
Após uma carreira de 30 anos como juiz federal — 20 deles vivendo sob uma pesada escolta da Polícia Federal — o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu, em 2018, tirar a proteção policial de Odilon de Oliveira, alvo de diversos ataques concretos e ameaças contra sua vida. Desde então, ele vive por conta própria, assombrado pelas décadas de ameaças vindas de alguns dos grupos criminosos mais perigosos do país, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho.
O juiz Odilon de Oliveira recorre da decisão no próprio CNJ até hoje, além de ter entrado com um processo na Justiça Federal para tentar recuperar a proteção. Ambos os casos estão sob segredo de Justiça
Procurado pela reportagem da Gazeta do Povo para saber se há data para decisão sobre o pedido de reconsideração sobre a escolta do juiz Odilon de Oliveira, por meio de sua assessoria de imprensa, o Conselho Nacional de Justiça respondeu apenas que não se manifesta sobre casos em tramitação.
Vida do juiz virou filmes
Desde que se aposentou, Odilon de Oliveira foi candidato ao governo do Mato Grosso do Sul em 2018, quando chegou ao segundo turno — na época, ainda contava com alguma escolta da Polícia Federal (PF). Hoje dedica-se à advocacia, inclusive defendendo acusados de participação em tráfico de drogas internacional e organizações criminosas.
“Não há contradição, tudo dentro do devido processo legal”, afirma o ex-juiz à Gazeta do Povo. “Além do que, é a única atividade que achei para desempenhar trancado dentro de casa, com audiências, reuniões e processos virtuais”, diz.
Viver com escolta é um inferno, destrói a sua vida. Ninguém quer andar com escolta para o resto da vida. Se peço, é porque é algo realmente necessário.
Ex-juiz Odilon de Oliveira
Em 2020, estreou na HBO Max o documentário “Odilon - réu de si mesmo”, com direção de Leandro Lima, sobre a história do magistrado. Em 2016, o diretor Sérgio Rezende já havia dirigido o longa de ficção “Em nome da lei”, estrelado por Mateus Solano e Paolla Oliveira, inspirado na vida do juiz.
Na entrevista concedida à Gazeta do Povo, o juiz aposentado Odilon de Oliveira fala sobre as ameaças e atentados contra sua vida, a luta para recuperar a proteção policial fornecida pelo Estado e a tristeza e decepção de ser “esquecido” pela União depois de uma vida lutando contra o crime organizado.
Confira a entrevista da Gazeta do Povo com o juiz Odilon de Oliveira
Gazeta do Povo: Desde quando o senhor vive sem escolta?
Odilon de Oliveira: Aconteceu o seguinte: em 2014 eu falei "vou me aposentar" e encaminhei uma consulta ao Conselho Nacional de Justiça. Eu tinha direito a aposentadoria pelo menos desde 1998. Basicamente falei: "pretendo me aposentar. Vocês vão garantir a minha segurança depois da inatividade?”
Aí enrolou, enrolou e a resposta só veio em 2018, dizendo que não iam manter nada, não. A Polícia Federal acha a segurança muito onerosa. De fato, é muito onerosa mesmo. Gasta muito como passagem de agentes de fora, de outros estados. Então passagem, diária…. mas é isso, não há o que fazer. Em 2017 finalmente me aposentei, ainda sem resposta do CNJ, e em 2018 decidiram retirar definitivamente minha segurança.
A justificativa foi que eu estava fazendo campanha para o governo do Mato Grosso. Na época cheguei ao segundo turno e, como estava em campanha, entenderam que eu não precisava mais de segurança. Até passarem todos os recursos, a escolta da Polícia Federal saiu da minha vida definitivamente no dia 1º de março de 2019.
Veja bem, viver com escolta é um inferno, destrói a sua vida, é muito triste. Então, ninguém quer andar com escolta para o resto da vida. Se peço, é porque é algo realmente necessário. Passei 20 anos sob segurança cerrada. Você perde amigos, eventos de família e datas importantes, por que ninguém quer você por perto, com razão, além de ser desagradável os seguranças armados ostensivamente com rifle, metralhadora… mas essa é minha vida.
Como o senhor faz desde então?
Eu entrei com um recurso ao CNJ e uma ação no tribunal federal. Reuni milhares de páginas, provas, ameaças, mas não há decisão nem em um caso nem no outro até hoje. Pedi para reconsiderarem e voltarem a me fornecer algum nível de escolta.
Eu tive que me restringir bem e hoje praticamente não saio mais de casa, virei um prisioneiro. Tudo o que eu quero é poder sair de casa três vezes por semana, no máximo por um período de seis horas, mas para isso preciso de proteção. Coisas simples: ir ao médico, dar uma volta pela cidade, comprar alguma coisa, fazer alguma atividade ao ar livre ou fora de casa.
Passei 20 anos sob segurança cerrada. Você perde amigos, eventos de família, por que ninguém quer você por perto, com razão, além de ser desagradável os seguranças armados ostensivamente.
Ex-juiz Odilon de Oliveira
De vez em quando preciso sair, aí amigos policiais me ajudam. Chego a contratar segurança privada, mas o custo é impossível para mim. Recebo líquido pouco mais de R$ 20 mil por mês de aposentadoria como juiz federal. Uma escolta privada por um único dia vai sair a partir de R$ 1 mil por baixo… Tenho um salário ótimo comparado com o que ganha a maioria da população, mas o dinheiro não dá para pagar segurança. Comecei na advocacia privada recentemente, no escritório junto com meus filhos, mas não é algo que me deixe rico.
É a mesma situação que me impede de sair do Brasil. Para se sustentar em dólar, em euro, com esse salário não é tão simples. Além do que, não quero ir embora do Brasil, isso ia me deixar uma mágoa muito grande. Então a situação é essa. Hoje vivo como um prisioneiro dentro da minha própria casa, que virou um bunker, uma fortaleza com um nível de proteção muito alto, mas não consigo sair. Eu e minha esposa vivemos trancados aqui dentro, e mesmo assim não dormimos tranquilos uma única noite. Andei com escolta 24 horas por dia desde 1998, por 20 anos, justamente pela concretude dos riscos à minha vida. E agora estou sem nenhuma proteção.
O senhor já foi ameaçado quantas vezes? Sofreu quantos atentados?
Eu fui ameaçado durante 20 anos. Nem tenho a conta de quantas ameaças foram ao longo da carreira como juiz. São muitas mesmo, centenas. Por e-mail, telefone, mensagem, bilhete deixado em porta e carro, estranho na rua e por aí vai.
Atentado contra minha vida sofri pelo menos quatro: ainda nos anos 1990, quando estava começando como juiz federal metralharam meu carro. Depois atacaram minha casa em Campo Grande, a tiros também, no final dos anos 1990, que foi quando comecei a ter a escolta da Polícia Federal. A ideia era me assustar, acredito, mas não assustaram.
Depois, em Ponta Porã, onde implementei a Vara Federal, houve um ataque ao hotel do Exército, onde eu ficava, para tentar me pegar. Isso foi em 2005, logo após eu condenar um traficante famoso internacionalmente e vários membros de sua quadrilha [Fernandinho Beira-Mar]. Teve troca de tiros e o sujeito conseguiu fugir com o carro de apoio que esperava por ele. Em 2011 aconteceu de novo, parecido, no mesmo lugar.
Mais recentemente, durante a campanha eleitoral de 2018, entrei em um bar em Ponta Porã para tomar um café e um sujeito me reconheceu. Na mesma hora veio pra cima de mim gritando e xingando. A sorte é que eu ainda tinha escolta e os agentes, que estavam à paisana e não tinham sido reconhecidos, e contiveram o homem.
Em 2020 teve outro episódio: já sem a presença da escolta, minha casa foi invadida por um indivíduo. Ele chegou a adentrar a sala, enquanto eu e minha esposa estávamos trancados no quarto, que tem uma proteção maior. Todos os alarmes foram acionados, a polícia chamada, e o sujeito fugiu sem levar nada. Muito estranho, parece que estavam querendo sondar o terreno… Depois disso aumentei o nível de segurança da casa. Tem serpentina, arame farpado, cerca elétrica, câmeras, sensor de movimento, alarme, portas reforçadas e tudo o mais. Aconteceram muitos outros casos ao longo da vida, nem lembro de todos.
O senhor se sente abandonado pelo poder público?
É decepcionante para um delegado, um promotor ou um juiz que renunciou à sua própria liberdade para proteger a sociedade, combatendo o crime organizado, ser completamente abandonado após se aposentar. O fato de não haver norma legal a respeito não afasta do Estado ou da União o dever de dar segurança ao policial, membro do Ministério Público ou juiz, na inatividade, desde que haja necessidade. Eu, aposentado desde outubro de 2017, permaneci sob proteção ininterrupta da Polícia Federal durante 20 anos. Tinha alojamento para os policiais dentro da minha própria residência.
Essa postura omissiva do Brasil representa um desestímulo a quem planeja exercer essas atividades de risco.
Ex-juiz Odilon de Oliveira
Viver retido dentro de casa, depois de tudo o que eu fiz e passei na minha vida e carreira, é muito ruim. Essa postura omissiva do Brasil representa um desestímulo a quem planeja exercer essas atividades de risco. É uma verdadeira desonestidade em relação a um compromisso tácito com o agente da lei.
Estou com 76 anos de idade, esperando há seis uma decisão sobre voltar a ter proteção para sair de casa e não viver mais preso. Não tenho a vida inteira pela frente e, depois de passar a maior parte dela combatendo o crime organizado, defendendo a sociedade brasileira, gostaria apenas de um pouco de paz e segurança na velhice.
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