
A vacuidade e a monotonia tornavam os dias tediosos e a rotina seguia bocejante. Guaratuba contava 20 mil habitantes e as perspectivas não eram muito animadoras. Alceu trabalhava à noite na panificadora e só ia dormir quando a cidade começava a despertar. Descansava até o meio-dia, almoçava no trabalho e à tarde se dirigia à praia ou à delegacia para jogar conversa fora com o policial de plantão. Por volta das 16 horas chegava à escola e estudava até às 20 horas. Às vezes saía direto para o trabalho, outras vezes ia jogar futebol de salão na cancha ao lado da Igreja Matriz até às 23 horas.
As amizades da escola pareciam uma boa alternativa ao marasmo. Os novos amigos fumavam maconha. Alceu nunca quis experimentar. Resistia às provocações. Muitas vezes, de cabeça feita, o grupo saía pela praia promovendo desordens. Alceu ponderou as consequências e evitou-os por um tempo. Mas os encontros eram inevitáveis nos corredores do colégio.
O assédio era demais. Volta e meia os colegas apareciam com alguma curtição. Estavam todos de acordo, atraídos pelo mistério do desconhecido e pela aventura. O plano da hora era invadir a lanchonete de Ingrid Indian, no pé do Morro do Cristo, no Brejatuba. Sabiam andar pelas ruas com o sigilo das ratazanas, pois desde criança haviam se exercitado em perseguições para ter com o que ocupar o tempo.
Havia uma intuição a dizer para Alceu que essa excursão noturna não resultaria em boa coisa, mas o desafio mexeu com os brios. As provocações puseram em relevo a impetuosidade adormecida. Se soubesse o que o esperava, decerto não iria, porque essa impetuosidade significaria que seria projetada a magotes uma sucessão de acontecimentos que redefiniriam seus rumos dali em diante.
A horas tantas, seis pares de olhos emboscados entre muros observavam atentos o alvo. Não se via ninguém na rua. Obedecendo ao sinal do líder, partiram para o ataque. Arrebentaram a porta da lanchonete. Comeram e beberam até não poder mais. O álcool alterou os ânimos e começaram a quebrar o que viam pela frente. Sem beber, Alceu mais assistia do que participava. Sabia que daria alguma consequência. E deu.
A polícia já os aguardava do lado de fora quando tentaram dar no pé. O delegado era do tipo esperto. Sabia que podia fazer as coisas de tal modo que a culpa recaísse sobre um apenas que viesse a carregar a culpa de todos.
Com frequência os delegados, para dar provas de astúcia, fazem seus arranjos para concluir um inquérito mesmo que à custa de um bode expiatório. Alceu estava ao dispor. Enquadrado no Código Penal, ficou à disposição da Justiça. No aniversário da cidade, 29 de abril de 1978, o juiz da Comarca, Edgar Winter, esteve na delegacia e prometeu analisar o caso “com carinho”. Não o fez. No início de maio, Alceu foi recambiado para Curitiba.
Na Penitenciária do Ahú, o corredor era longo e sombrio. Todos aqueles homens, encarcerados feito bichos, assemelhavam o lugar a um circo de horrores. Agitavam as mãos entre os vãos das grades a cada novo detento conduzido pelo corredor, emitindo gritos selvagens iguais a rosnados de feras enjauladas. Feito bestas, viam-no como carne fresca.
Réu primário, ficou no xadrez 104 da primeira galeria. A tímida janela dava vista para um amplo pátio retangular, ao redor do qual se erguia feito muralha um edifício de alvenaria de quatro pavimentos. Lembrou-se do seminário. Agora, porém, não se tratava de crianças confinadas como advertência, mas de homens aprisionados à chave.
Você vai direto para a cela-forte. Vai ficar lá quatro meses e, se tiver bom comportamento, vai subir para o fundão da quinta, onde vai ficar mais dois meses. Só depois vai para o convívio. Isso é para você aprender a respeitar os funcionários e saber que não está em casa.
Faltava pouco para o fim de 1979 quando Alceu foi chamado ao fórum da comarca de São José dos Pinhais. Receberia o direito à liberdade condicional do juiz Edgar Winter, o mesmo que o condenou por vandalismo. Na Vara de Execuções Penais, o juiz Edson Ribas Matachini fez as recomendações de praxe. Teria de arrumar emprego com carteira assinada em 30 dias e se apresentar uma vez por mês ao fórum para carimbar a carteirinha que tinha acabado de receber.
Não seria dessa vez que se prestaria ao papel de gado tangido. Rasgou a carteirinha e o alvará de soltura em mil pedaços, atirando os restos no lixo. Nunca iria se apresentar e tampouco portar documentos que provassem sua condição de ex-presidiário. Dirigiu-se à rodoviária de Curitiba. Embarcou para Paranaguá.
Dormiu na casa da mãe. Conversou com o padrasto e com as meias-irmãs Marli, Marisa, Sueli, Tânia e Jurema. No outro dia, embarcou num ônibus para Praia de Leste, a 30 km dali. Na penitenciária os irmãos Vítor e Sérgio Luís Anderete, recolhidos por porte de maconha, disseram que um velho amigo de Guaratuba tinha acabado de abrir um restaurante em Praia de Leste. Jorge, o amigo em questão, o contratou como auxiliar de serviços gerais. Alceu instalou-se num quartinho nos fundos do Restaurante Gamela sem revelar sua condição de ex-presidiário.
Num sábado, meados de dezembro, Alceu e Jorge jogavam futebol na praia central de Guaratuba quando a partida foi ganhando em violência. O goleiro do time visitante, Gersinho, se desentendeu com um dos adversários e os dois se atracaram. A briga se espalhou. Outra vez o azar o acertaria com força redobrada. Perto da trave, Alceu sentiu uma pancada na cabeça.
Após 40 dias entre a vida e a morte na Unidade de Terapia Intensiva, os médicos da Santa Casa de Paranaguá ponderaram as sequelas. Alceu ficaria paraplégico ou teria problemas neurológicos. A sorte enfim compareceu. Saiu inteiro, embora tivesse de passar o resto dos dias com uma bala alojada na cabeça por obra de um antigo colega de escola, o Orelhinha. Passou a acalentar a ideia de voltar a Guaratuba para dar uma boa surra no maldito.
Em visita à casa da mãe, reencontrou os sobrinhos gêmeos Ivo e Ivonaldo, de 10 anos, filhos de Maria. A Rádio Difusora anunciava o jogo do Rio Branco com o Operário Ferroviário, de Ponta Grossa. Tinha dinheiro para levar só um deles.
Alceu e Ivo se instalaram no alambrado do Estádio Nelson Medrado Dias. Desde o início, a partida mostrou-se agressiva. O zagueiro do Rio Branco, Ditão, um estivador negro e forte, deu uma entrada violenta no ponta-direita do Operário, Paulinho. Estabeleceu-se a confusão. Briga generalizada, polícia no gramado. O árbitro expulsou dois de cada lado. Pelo Rio Branco saíram Ditão e Polaco; pelo Operário, Tairzão e Marcelo. O jogo prosseguiu e com menos gente em campo deu para prestar mais atenção nos que restaram.
– Olha, tio, aquele número 7 do Operário não é o tio Paulinho? – perguntou Ivo.
Alceu passou a olhá-lo com atenção. Era mesmo o irmão que não via desde que se mudou para Guaratuba. Mais forte e com cabelos longos, Paulinho se assemelhava a um lutador romano. Veloz e habilidoso, dava trabalho aos defensores do Rio Branco e, por causa disso, era o mais visado. No intervalo, Ivo e Alceu gritaram para Paulinho, que foi até eles no alambrado. Mal puderam se cumprimentar, pois o jogador precisava ouvir a preleção do treinador. Combinaram uma conversa para depois da partida.
No segundo tempo o jogo ficou mais violento, resultando numa batalha campal. O árbitro encerrou a partida antes do tempo, com a vitória do Operário por 4 a 3, deixando mais revoltados os torcedores do Rio Branco. A equipe adversária teve de deixar a cidade escoltada pela Polícia Militar. Era julho de 1980 e, nessas circunstâncias, Alceu viu o irmão pela última vez. Emendou uns dias a mais de folga para pôr em dia umas questões pendentes em Guaratuba.
O disparo na cabeça não deixou sequelas físicas nem neurológicas, e sabia que Orelhinha morava no Brejatuba, perto da Praça dos Paraguaios. Encontrou uma casa vazia e invadiu. Havia apenas uma cama sem colchão, um sofá velho e alguns armários. Saiu à procura de uma mercearia para comprar alimentos. Encontrou um mercadinho, onde foi visto, seguido e preso. Detido por invasão de domicílio, a polícia não tardaria a descobrir que estava devendo cadeia por não ter se apresentado quando em liberdade condicional.



