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Há 12 anos Alceu cuida de Dona Maria, a “mãe” que o salvou de um envenenamento nas ruas. | Brunno Covello/Gazeta do Povo
Há 12 anos Alceu cuida de Dona Maria, a “mãe” que o salvou de um envenenamento nas ruas.| Foto: Brunno Covello/Gazeta do Povo

A vida seguiu com preços altos. Alceu tinha 29 anos e, em janeiro de 1984, se viu na condição de morador de rua. O emprego que conseguiu numa churrascaria ao sair da prisão não durou um ano. A vida real o fez maneirar nas exigências. No exercício diário da sobrevivência dormia onde dava, comia as sobras de restaurantes ou o que encontrasse de proveito nas lixeiras.

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Um cortiço abrigava a escória curitibana onde outrora tinha sido a Pensão da Dona Nena, na Avenida Getúlio Vargas, entre a Lamenha Lins e a Brigadeiro Franco. A mulher não conseguiu honrar os compromissos e deixou para trás alguns inquilinos e muitas dívidas. O imóvel tinha vários quartos, três salas, cozinha e três banheiros, sendo logo invadido por prostitutas, travestis, rufiões, malandros e moradores de rua.

De todos os cantos surgia uma gente fora dos padrões. A “Gaiola das Loucas” tinha uma mistura exuberante e arbitrária de tipos burlescos, uma turma em estado de decomposição. Levavam uma vida perdulária e destrutiva. Avesso ao álcool e ao cigarro, Alceu era o único livre de vícios. Mas a trupe exótica acabou sendo expulsa pela polícia. Alceu vagou pela zona central. Dormia na Praça do Japão, perto dos endereços mais nobres do Batel. Fez da praça um lar, do chafariz uma lavanderia, do cipreste uma cama.

Depois de cinco anos caminhando ao deus-dará, deparou-se com um grupo que fez de um terreno baldio sua morada. O lugar, na confluência das ruas Bento Viana e Silva Jardim, era chamado de Quintal do Malucelli, alusão ao vizinho ilustre, o milionário Joel Malucelli. Uma senhora negra de cabelos desgrenhados e sinais de demência esquentava água para o café numa lata velha.

O marido de Dona Maria morreu deixando-a com quatro filhos. A menina, Luciana, foi internada no Lar das Meninas Hermínia Lupion, nas Mercês. José e João Paulo acabaram nas ruas. Ela passou a morar com o caçula Osmar numa pensão na Avenida Iguaçu e, não tendo mais condições de pagar o aluguel, o senhorio a pôs na rua com o filho pequeno.

O grupo passava as noites na varanda de uma imobiliária, na Avenida Silva Jardim, ao lado do terreno baldio. Numa tarde, Alceu tocou a campainha de uma residência do Batel pedindo o que comer. Um homem mal-humorado entregou uma sacola com restos de comida e bolinhos de carne, ordenando que se retirasse. Alceu saiu para comer. À noite, começou a passar mal na marquise onde dormia.

O fluxo de sangue fazia a cabeça pesar, rebentando de dor; a testa queimando. Calafrios, convulsões, os olhos sem controle, as mãos trepidantes. A agonia fervia os miolos. Um abismo profundo e hediondo se aproximava com um céu sombrio e umas formas estranhas se movendo. Fechou os olhos, e viu tudo mais nítido. Ouvia os pensamentos do homem a dizer “morra, seu filho da puta”. Foi isso o que ele falou; ele sim, um grande filho da puta. Sentiu uma vez mais o mal-estar que conduz ao vômito; o corpo, em sua luta pela vida, tentando expelir o veneno.

Dona Maria escutou os gemidos. Passou um pano úmido na fronte de Alceu. Era noite quando saiu para vasculhar os arredores, o céu obscurecido por algumas nuvens, as estrelas pálidas e a lua pela metade. Atravessou a rua vazia, andou um bocado e entrou num terreno baldio perto do cemitério do Água Verde. Toda a atenção estava concentrada numa touceira. Vasculhou com as mãos os ramos mais altos. Levou ao nariz algumas folhas. Boldo e araçá. Voltou com a urgência que as pernas permitiam. Fez o preparado na fogueira que ainda ardia no terreno baldio.

O corpo jazia trêmulo na marquise, empapado de suor. O cérebro girava em círculos. Ela suspendeu a cabeça dele para pingar o chá na boca. Um silêncio triste tomou conta de ambos. Quando parecia estar no momento da execução sumária, ou, na melhor das hipóteses, sendo arrastado para uma tormentosa noite de agonia como forma de prolongar o martírio, um torpor e um alheamento misericordioso tomaram conta dele e se viu mergulhar no vazio da inconsciência, de alguma forma ciente de que estava seguindo não para o caminho da morte, e sim para um sono reparador.

O fluxo de sangue fazia a cabeça pesar, rebentando de dor; a testa queimando. Calafrios, convulsões, os olhos sem controle, as mãos trepidantes. A agonia fervia os miolos. Um abismo profundo e hediondo trazia um céu sombrio e umas formas estranhas se movendo. Fechou os olhos, e viu tudo mais nítido. Ouvia os pensamentos do homem a dizer ‘morra, seu filho da puta’.

O sol o encontrou estirado na marquise, coberto apenas por um insólito cobertor puído. Acordou por volta do meio-dia, recuperado. A amizade cresceu entre eles. Todos os dias, faziam fogo para o café no terreno baldio e à noite se reuniam para dormir na marquise da imobiliária. O riso desdentado daquela mulher, a pele negra reluzente, os olhos vivos que vagavam com uma expressão infantil, tudo isso o fazia projetar uma ideia que o perseguia fazia algum tempo. E certa vez, inadvertidamente, chamou-a de mãe. Ela apenas sorriu.

– Mãe, um dia vou tirar a senhora das ruas. Vou cuidar da senhora até o fim.

Os anos correram e Alceu contava agora 38 anos. Nunca teve além de amores de minuto. Mas não há quem passe pela vida incólume aos anseios do coração. O amor se apresentou de forma tão prosaica que parecia não haver ali algum romantismo. Mas havia. Começava a ganhar cores o seu mundo em preto e branco.

No início de 1993, Alceu ganhou trabalho como lavador de carros numa loja de automóveis. Depois, se mudou para a DC Informática, onde foi cooptado pelo patrão para trazer contrabando do Paraguai. Em 300 viagens trouxe de Ciudad del Este US$ 5 milhões em informática, eletroeletrônicos, remédios. Em três anos, só perdeu a mercadoria uma vez, no posto da Receita Federal em São Luiz do Purunã, perto de Curitiba.

Dinheiro no bolso, costumava ajudar os amigos do Quintal do Malucelli e também para ir atrás de guloseimas na feirinha do Batel, na Rua Carneiro Lobo. Um dia, vestiu-se com apuro e durante o trajeto se entregou às loucas esperanças que enchem a vida dos apaixonados. Não fossem os riscos do imprevisto, que sabor teria a vida? Caminhava pensando no que diria, ensaiando o tom da voz, corrigindo palavras, reformulando sentenças, imaginando a melhor maneira de encaminhar as circunstâncias nas quais baseava o seu futuro.

Fazia tempo que reparava numa mulher morena clara, magra, estatura média, longos cabelos negros. Evangélica, trajava sempre saia preta, camisa branca de manga comprida, sapato preto. A imagem viva de uma santa, uma virgem de Rafael. Glória Coelho de Aguiar era seu nome. Ia à feira para ajudar o marido, Nivassil, que ganhava a vida cuidando de carros nas ruas próximas da feirinha. Em algumas semanas, Nivassil morreria num sanatório na Lapa por falência múltipla dos órgãos.

Glória continuou indo à feira para cuidar de carros. Alceu agora tinha uma esperança. Ela circulava entre os carros à espera da gorjeta. Ele rodeava as barracas, sempre buscando-a com o rabo de olho.

Quanto tempo de luto teria de conceder à Glorinha? No íntimo, tinha desejado a morte do rival. Mas não tinha nada a ver com aquilo, era apenas a sorte que enfim decidiu dar uma ajuda depois de tanto tempo omissa. Bastava pensar em Glorinha para o coração bater com indiscrição. Um dia ela o surpreendeu mirando-a especulativamente. Era uma mulher demasiado recatada para sustentar os olhos fixos nele, mas por uma fração de segundo pareceu entender o que aquele olhar significava.

Alceu precisava de alguém para lavar suas roupas. Pagaria 20 reais e daria dois vales-transporte. Glória aceitou a tarefa. A conversa foi se diversificando, com assuntos cada vez mais íntimos. No começo de 1997, Alceu pediu demissão da firma, que estava à beira da falência, e foi morar com Glória num barraco nos fundos da fábrica de papel higiênico Mili, no Pinheirinho.

A favela não era mais do que um ajuntamento de casinhas deprimentes, feitas de umas tábuas carcomidas dependuradas num barranco. A casinha inteira não tinha mais do que 30 metros quadrados, distribuídos em dois quartos minúsculos e uma sala e cozinha conjugada. Alceu gastou dois dos três mil reais da sua poupança no Bamerindus. O casal passou a coletar lixo reciclável como forma de subsistência. Alugaram um carrinho de tração humana e passaram a vasculhar as lixeiras da cidade em busca de algo aproveitável. Rendia o suficiente para sobreviver.

Passados três anos, um conhecido de Glorinha propôs uma permuta do barraco por outro na Vila Pompeia, ainda na região sul de Curitiba. Alceu só precisou acrescentar uma tevê de 14 polegadas e R$ 300 por uma casa maior, embora também numa área de invasão. Não era muito melhor, mas representava um avanço. Pareciam prosperar, até o passado voltar para cobrar umas dívidas.

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