
O cinema de horror nacional e o coveiro Zé do Caixão nasceram de um pesadelo do cineasta José Mojica Marins, que delirou com uma figura vestida de preto o arrastando para dentro de uma cova. O sonho veio como um raio, que o fez se lembrar dos filmes de monstro que via na infância, quando o pai era responsável por uma sala de projeção em São Paulo.
Naquele período, por volta de 1963, o artista, trabalhava em um longa-metragem policial. O tormento noturno o levou a interromper as filmagens e começar, às pressas, a produção de À Meia-noite Levarei Sua Alma (1964). A obra se tornaria a primeira fita de horror do cinema brasileiro.
O cartaz de divulgação já anunciava o pioneirismo, como recorda o jornalista Carlos Primati, que esteve por trás do lançamento de parte da filmografia do diretor em DVD, em 2002. "Até então, o país não tinha nenhum longa-metragem que assumisse o gênero abertamente", comenta. Pelo menos não como visto nos Estados Unidos e na Europa.
Obras como O Caiçara (1950), Presença de Anita (1951) e Meu Destino É Pecar (1952) usavam o imaginário gótico, mas não se classificavam como tal. Mojica, que hoje está com 78 anos e internado em uma UTI sem previsão de alta por problemas no rim após um enfarte, se aproveitou da brecha com convicção e se tornou um símbolo do horror no Brasil.
Sucesso
Parte da fama do diretor foi construída por acaso, pois, inicialmente, ele não pretendia assumir a capa e a cartola de Zé do Caixão. Como não encontrava ninguém que o convencesse no papel, decidiu ele mesmo protagonizar À Meia-noite Levarei Sua Alma.
Assim que foi lançado, o filme se tornou sucesso de público. Fruto de seu tempo, a produção dialogava com as classes populares do Brasil, mexendo com medos tipicamente nacionais, como almas penadas e maldições de ciganos.
Para pagar as dívidas da produção, Mojica precisou vender os direitos de distribuição e ficou de fora da arrecadação. Mesmo assim, a obra lhe rendeu fama e garantiu a continuidade da trajetória de seu personagem coveiro em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967). Criador e criatura começavam a se confundir.
"Aos poucos, ele se tornou uma espécie de folclore brasileiro", observa o jornalista Ivan Finotti, coautor da biografia Maldito: a Vida e o Cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão (Editora 34, 1998), ao lado do também jornalista André Barcinski. No início da década seguinte, o diretor, que já havia lançado obras como O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968) e Ritual dos Sádicos (1970), passou a ter seguidores e concorrentes no gênero.
Expansão
Foi em um reduto do Centro de São Paulo, que admiradores do experimentalismo de Mojica realizaram produções que dialogavam com o horror. O local ficou conhecido como Boca do Lixo e se tornou espaço de produção de cineastas como Rogério Sganzerla, de O Bandido da Luz Vermelha (1968), e Walter Hugo Khouri, de As Filhas do Fogo (1978).
Em sua tese de doutorado, a pesquisadora paulista Laura Cánepa levantou mais de uma centena de títulos produzidos no Brasil e que podem ser caracterizados como parte do cinema de horror. "O problema é que, ao contrário da obra de Mojica, esses filmes estavam ligados a outros ciclos, como o das pornochanchadas", diz a autora.
A lista de produções paulistas surgidas depois da estreia de Zé do Caixão inclui longas-metragens como Excitação (1976), de Jean Garret; Ninfas Diabólicas (1976), de John Doo; e Seduzidas pelo Demônio (1977), de Rafaelle Rossi. No Rio de Janeiro, o carioca Ivan Cardoso se inspirava nos monstros hollywoodianos para lançar O Segredo da Múmia (1982) e As Sete Vampiras (1986).
Declínio e retomada
Enquanto isso, Mojica lutava contra a censura que perseguia suas produções por apresentar temas transgressores, como sexo e drogas. "Ele teve muitos problemas com o Estado, o que atrapalhou bastante sua carreira", complementa o biógrafo André Barcinski. A perseguição o levou a se dedicar aos filmes de sexo explícito, que ainda rendiam dinheiro nos anos 1980.
Zé do Caixão não caiu no esquecimento graças a fãs como Barcinski, que ajudou a lançar parte da obra do cineasta nos Estados Unidos em VHS na década seguinte. O diretor Dennison Ramalho foi outro militante, ao manter a memória do artista viva. O cineasta fez parte do ciclo de retomada do cinema de horror nacional nos anos 2000, ao lado do capixaba Rodrigo Aragão e do curitibano Paulo Biscaia Filho, e foi um dos responsáveis por levar Mojica de volta ao cargo de diretor, em Encarnação do Demônio (2008).
Cineasta se confunde com a própria obra
Um dos grandes legados dos filmes de José Mojica Marins para a cultura nacional é o próprio Zé do Caixão. Há poucos exemplos de integração entre artista e obra no mundo como o do cineasta. Ao andar na rua, as pessoas o chamam pelo nome do coveiro. As unhas compridas do personagem foram adotadas no dia a dia do diretor.
Em seu programa de entrevistas O Estranho Mundo de Zé do Caixão, exibido pelo Canal Brasil, ele fala da própria vida e ainda profere maldições como se fosse um místico. Consciente do sucesso, Mojica parece não querer ser esquecido. Seus filmes, no entanto, apresentam um caráter mais sério, quase sem humor.
Nem todos sabem disso. Quando a obra é citada em rodas de conversas, as pessoas se espantam ao descobrirem que os filmes apresentam tramas pesadas e cenas fortes. Em Encarnação do Demônio (2008), uma mulher é amarrada dentro do cadáver de um porco (de verdade) enquanto outra mergulha em um barril com milhares de baratas. Na trama de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1966), o coveiro tortura mulheres com aranhas e cobras.
Críticos americanos como o videomaker James Rolfe descrevem o cinema de Mojica como doentio, tamanho o sadismo de Zé do Caixão, conhecido lá fora como Coffin Joe. Trata-se de um personagem estuprador, iconoclasta e blasfemo. Um exemplo disso é a zombaria que faz das almas penadas ao fim de À Meia-noite Levarei Sua Alma (1964). A cena, inclusive, é uma das mais importantes da história do cinema nacional, pois faz um uso brilhante de efeitos visuais artesanais.
"O problema é que suas aparições públicas o tornaram uma figura folclórica associada à comédia", diz o jornalista Ivan Finotti, um de seus biógrafos. Durante os anos 1980, o artista fez matérias sensacionalistas para o jornal Notícias Populares, cortou suas unhas publicamente no programa do Gugu Liberato e concorreu ao cargo de deputado federal. Chegou a animar bingo em tempos de vacas magras.
Brutalidade
Em função de tudo isso, o teor sério de suas obras espanta quem o descobre no cinema. "Via muito o personagem na televisão, mas quando assisti a alguns de seus filmes fiquei impressionado. Era um horror para adulto, que buscava encontrar o medo primitivo das pessoas", descreve o cineasta Dennison Ramalho, que nos anos 2000 roteirizou Encarnação do Demônio.
"Eram filmes feitos com muita paixão, cheios de energia nacional", observa o diretor Rodrigo Aragão. O capixaba, que convidou Mojica para comandar um trecho do projeto Fábulas Negras, vem sendo apontado como sucessor do cineasta paulista. O título, ele rejeita. "Zé do Caixão é único e insubstituível."




