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 | Foto: Flávio Florido/ Folhapress, com arte de Guilherme Paixão
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Horror resgata orígens primitivas do medo

Daniel Zanella,especial para a Gazeta do Povo O medo tem muitos olhos e enxerga coisas no subterrâneo, dizia Cervantes. Não apenas no plano artístico-narrativo mais fechado do gênero horror, do lançamento de O Castelo de Otranto, de Horace Walpole, em 1756, ao cinema cinzento-retumbante característico de Zé do Caixão, o medo sempre esteve presente nos processos de criação e, sobretudo, intrínseco na própria condição humana, componente de pesadelo, dor e catarse.

O medo é milenar, grafado nas pinturas rupestres dos mais remotos desertos, e nos entrelaça na escuridão, na caverna primordial do indivíduo vulnerável, quando estamos ali, nas esquinas sem destino, diante do inexplicável e do incerto. Se em tempos imemoriais eram os fenômenos da natureza a nos aterrorizar – o raio, a chuva, o fogo, o predador –, o contato direto com os signos irreconciliáveis da morte (em seu feroz segredo), da precariedade da vida e da passagem do tempo ainda faz do medo nosso companheiro.

Patologias

Sobre meninos e lobos, em Medo Líquido, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman alega tecnicamente que os perigos dos quais se tem medo podem ser de três tipos: alguns ameaçam o corpo e as propriedades, outros são de natureza mais geral, ameaçando a durabilidade da ordem social e a confiabilidade nela, e, depois, os perigos que ameaçam o lugar da pessoa no mundo – a identidade, a hierarquia, a imunidade à degradação e à exclusão sociais.

Nesta última esfera, a contemporaneidade colabora com especial vigor para a perpetuação do temor, fugindo um pouco da ideia arqueológica do medo como fundamental para nosso sucesso enquanto espécie. A violência dos centros urbanos, os índices de desemprego e competitividade no mercado de trabalho, a dificuldade de lidar com a solidão interna, de certo modo, contribuem para que a metafísica do temor permaneça firme e forte no inconsciente das massas e da cultura.

Então, temos o cinema, como já afirmava o crítico francês André Bazin, que não deve quase nada ao espírito científico e representa, em um plano simbólico, o espírito das patologias de cada época.

Cânone dos estudos de gênero, a Filosofia do Horror ou Paradoxos do Coração, do filósofo e crítico literário Noël Carrol, propõe a mediação entre o cinema, o pacto de descrença e a forma como o espectador compra a realidade no irreal. "A palavra horror deriva do latim horrere – ficar em pé (como cabelo em pé ou eriçar) – e do francês antigo orror – eriçar ou arrepiar. E embora não seja preciso que nosso cabelo fique literalmente em pé quando estamos artisticamente horrorizados, é importante que a concepção original da palavra a ligava a um estado fisiológico anormal (do ponto de vista do sujeito) de agitação sentida."

Pulsão

Casa de vidro e desejos reprimidos do espectador

Diante da ótica da anormalidade, o horror se joga de corpo inteiro. São criaturas disformes, seres de pactos com o capiroto – não custa lembrar que o primeiro filme de horror é, perceba, do ilusionista de profissão George Meliès, A Mansão do Diabo, de 1896 –, sangue aos borbotões e toda uma profusão de eventos macabros e medonhos. Como afirma Carrol, é crucial que entrem em ação dois componentes avaliativos num filme de horror: que o monstro seja considerado ameaçador e impuro. Se o monstro for considerado apenas potencialmente ameaçador, a emoção seria o medo; se só potencialmente impuro, a emoção seria a repugnância.

O horror artístico exige, portanto, uma avaliação tanto de ameaça, quanto da repugnância. Em miúdos: pessoas comuns com sentimentos comuns, não no que o termo carrega de pejorativo, enfrentando situações extraordinárias e apavorantes.

As narrativas sombrias e de clima mórbido remontam a um sistema interno que o estudioso David Bordwell, em Estudos de Cinema Hoje e as Vicissitudes da Vida, chama de divisão de planos consciente-inconsciente. "O cinema acaba ‘gratificando’ o desejo do espectador".

Genealogia

Barbárie interior nas entranhas do medo

É disseminado que Stephen King, autor de Carrie, A Estranha, A Colheita Maldita e O Iluminado, sabe muito bem das coisas. "O trabalho do horror não está interessado no verniz civilizado que permeia nossas vidas. O horror é arte? O trabalho de horror não é nada senão arte; ele alcança o estatuto de arte simplesmente porque está procurando algo para além do artístico, algo que precede a arte: está procurando pelo que eu chamaria de pontos de pressão fóbica."

De fato, seria injusto, por diversos ângulos, reduzir um gênero totalizante e representativo de nossos anseios internos a não-arte ou arte menor e dissociá-lo de ambições estéticas. Até porque, isso que King define como os medos estendidos na frente do espectador, Zé do Caixão traduz com maestria e singularidade. Coffin Joe, modo carinhoso como é conhecido no exterior entre estudantes de cinema que se multiplicam para analisar sua filmografia – aqui ele é ou 1) esnobado; 2) marginalizado no processo de entendimento do cinema nacional e 3) reduzido à mitologia de sua figura pública –, consegue trazer o horror para o universo identitário do Brasil.

Brasil

Brejo das almas perdidas e das cruzes

Temos em todos os filmes de Zé do Caixão um brasileirismo de brejo, sem as cores vibrantes do tropical e dos estereótipos. É um cinema de ciganas, bruxas, pântanos, baixo orçamento, sincretismo, anunciação às avessas e a quebra de convenções. [Em uma turnê de relembranças, Zé do Caixão é responsável por toda uma geração de crianças e adolescentes a ouvir de seus pais que ele era maldito e desaconselhável, o que, naturalmente, alimentava ainda mais a curiosidade.]

Ele é também, em seu modo de produzir e realizar cinema, o exemplo acabado de um tipo de sentimento profundo disseminado entre nós: o medo de que uma obra tão vasta e original acabe esquecida, considerando o baixo apego generalizado que temos à nossa memória cultural. "O cinema de Mojica envelheceu hoje. Seus filmes são difíceis de serem vistos pelas novas gerações. Mesmo assim, são obras sensacionais no tema e no estilo e precisam ser preservadas", salienta André Barcinski, coautor da biografia do cineasta.

  • Cena do filme Encarnação do Demônio, em que Mojica encerra a saga de seu personagem símbolo

O cinema de horror nacional e o coveiro Zé do Caixão nasceram de um pesadelo do cineasta José Mojica Marins, que delirou com uma figura vestida de preto o arrastando para dentro de uma cova. O sonho veio como um raio, que o fez se lembrar dos filmes de monstro que via na infância, quando o pai era responsável por uma sala de projeção em São Paulo.

Naquele período, por volta de 1963, o artista, trabalhava em um longa-metragem policial. O tormento noturno o levou a interromper as filmagens e começar, às pressas, a produção de À Meia-noite Levarei Sua Alma (1964). A obra se tornaria a primeira fita de horror do cinema brasileiro.

O cartaz de divulgação já anunciava o pioneirismo, como recorda o jornalista Carlos Primati, que esteve por trás do lançamento de parte da filmografia do diretor em DVD, em 2002. "Até então, o país não tinha nenhum longa-metragem que assumisse o gênero abertamente", comenta. Pelo menos não como visto nos Estados Unidos e na Europa.

Obras como O Caiçara (1950), Presença de Anita (1951) e Meu Destino É Pecar (1952) usavam o imaginário gótico, mas não se classificavam como tal. Mojica, que hoje está com 78 anos e internado em uma UTI sem previsão de alta por problemas no rim após um enfarte, se aproveitou da brecha com convicção e se tornou um símbolo do horror no Brasil.

Sucesso

Parte da fama do diretor foi construída por acaso, pois, inicialmente, ele não pretendia assumir a capa e a cartola de Zé do Caixão. Como não encontrava ninguém que o convencesse no papel, decidiu ele mesmo protagonizar À Meia-noite Levarei Sua Alma.

Assim que foi lançado, o filme se tornou sucesso de público. Fruto de seu tempo, a produção dialogava com as classes populares do Brasil, mexendo com medos tipicamente nacionais, como almas penadas e maldições de ciganos.

Para pagar as dívidas da produção, Mojica precisou vender os direitos de distribuição e ficou de fora da arrecadação. Mesmo assim, a obra lhe rendeu fama e garantiu a continuidade da trajetória de seu personagem coveiro em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967). Criador e criatura começavam a se confundir.

"Aos poucos, ele se tornou uma espécie de folclore brasileiro", observa o jornalista Ivan Finotti, coautor da biografia Maldito: a Vida e o Cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão (Editora 34, 1998), ao lado do também jornalista André Barcinski. No início da década seguinte, o diretor, que já havia lançado obras como O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968) e Ritual dos Sádicos (1970), passou a ter seguidores e concorrentes no gênero.

Expansão

Foi em um reduto do Centro de São Paulo, que admiradores do experimentalismo de Mojica realizaram produções que dialogavam com o horror. O local ficou conhecido como Boca do Lixo e se tornou espaço de produção de cineastas como Rogério Sganzerla, de O Bandido da Luz Vermelha (1968), e Walter Hugo Khouri, de As Filhas do Fogo (1978).

Em sua tese de doutorado, a pesquisadora paulista Laura Cánepa levantou mais de uma centena de títulos produzidos no Brasil e que podem ser caracterizados como parte do cinema de horror. "O problema é que, ao contrário da obra de Mojica, esses filmes estavam ligados a outros ciclos, como o das pornochanchadas", diz a autora.

A lista de produções paulistas surgidas depois da estreia de Zé do Caixão inclui longas-metragens como Excitação (1976), de Jean Garret; Ninfas Diabólicas (1976), de John Doo; e Seduzidas pelo Demônio (1977), de Rafaelle Rossi. No Rio de Janeiro, o carioca Ivan Cardoso se inspirava nos monstros hollywoodianos para lançar O Segredo da Múmia (1982) e As Sete Vampiras (1986).

Declínio e retomada

Enquanto isso, Mojica lutava contra a censura que perseguia suas produções por apresentar temas transgressores, como sexo e drogas. "Ele teve muitos problemas com o Estado, o que atrapalhou bastante sua carreira", complementa o biógrafo André Barcinski. A perseguição o levou a se dedicar aos filmes de sexo explícito, que ainda rendiam dinheiro nos anos 1980.

Zé do Caixão não caiu no esquecimento graças a fãs como Barcinski, que ajudou a lançar parte da obra do cineasta nos Estados Unidos em VHS na década seguinte. O diretor Dennison Ramalho foi outro militante, ao manter a memória do artista viva. O cineasta fez parte do ciclo de retomada do cinema de horror nacional nos anos 2000, ao lado do capixaba Rodrigo Aragão e do curitibano Paulo Biscaia Filho, e foi um dos responsáveis por levar Mojica de volta ao cargo de diretor, em Encarnação do Demônio (2008).

Cineasta se confunde com a própria obra

Um dos grandes legados dos filmes de José Mojica Marins para a cultura nacional é o próprio Zé do Caixão. Há poucos exemplos de integração entre artista e obra no mundo como o do cineasta. Ao andar na rua, as pessoas o chamam pelo nome do coveiro. As unhas compridas do personagem foram adotadas no dia a dia do diretor.

Em seu programa de entrevistas O Estranho Mundo de Zé do Caixão, exibido pelo Canal Brasil, ele fala da própria vida e ainda profere maldições como se fosse um místico. Consciente do sucesso, Mojica parece não querer ser esquecido. Seus filmes, no entanto, apresentam um caráter mais sério, quase sem humor.

Nem todos sabem disso. Quando a obra é citada em rodas de conversas, as pessoas se espantam ao descobrirem que os filmes apresentam tramas pesadas e cenas fortes. Em Encarnação do Demônio (2008), uma mulher é amarrada dentro do cadáver de um porco (de verdade) enquanto outra mergulha em um barril com milhares de baratas. Na trama de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1966), o coveiro tortura mulheres com aranhas e cobras.

Críticos americanos como o videomaker James Rolfe descrevem o cinema de Mojica como doentio, tamanho o sadismo de Zé do Caixão, conhecido lá fora como Coffin Joe. Trata-se de um personagem estuprador, iconoclasta e blasfemo. Um exemplo disso é a zombaria que faz das almas penadas ao fim de À Meia-noite Levarei Sua Alma (1964). A cena, inclusive, é uma das mais importantes da história do cinema nacional, pois faz um uso brilhante de efeitos visuais artesanais.

"O problema é que suas aparições públicas o tornaram uma figura folclórica associada à comédia", diz o jornalista Ivan Finotti, um de seus biógrafos. Durante os anos 1980, o artista fez matérias sensacionalistas para o jornal Notícias Populares, cortou suas unhas publicamente no programa do Gugu Liberato e concorreu ao cargo de deputado federal. Chegou a animar bingo em tempos de vacas magras.

Brutalidade

Em função de tudo isso, o teor sério de suas obras espanta quem o descobre no cinema. "Via muito o personagem na televisão, mas quando assisti a alguns de seus filmes fiquei impressionado. Era um horror para adulto, que buscava encontrar o medo primitivo das pessoas", descreve o cineasta Dennison Ramalho, que nos anos 2000 roteirizou Encarnação do Demônio.

"Eram filmes feitos com muita paixão, cheios de energia nacional", observa o diretor Rodrigo Aragão. O capixaba, que convidou Mojica para comandar um trecho do projeto Fábulas Negras, vem sendo apontado como sucessor do cineasta paulista. O título, ele rejeita. "Zé do Caixão é único e insubstituível."

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