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Fernanda nunca participou de uma montagem de Shakespeare, mas Nelson Rodrigues escreveu duas peças para ela |
Fernanda nunca participou de uma montagem de Shakespeare, mas Nelson Rodrigues escreveu duas peças para ela| Foto:

A permanência de um ofício

O teatro é, por força de sua essencialidade, uma arte efêmera. O seu tempo é gerado no ato da representação e, portanto, se esgotaria na duração de uma encenação.

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Do Rio ao Oscar, via Central do Brasil

Era uma vez uma mulher chamada Dora. Ex-professora, pobre, suburbana, amarga. Como meio de sobrevivência, escreve cartas para analfabetos no principal terminal ferroviário do Rio de Janeiro, a Central do Brasil, que dá título ao longa-metragem de Walter Salles.

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Opinião

A mulher é uma realidade finita

Luciana Romagnolli, enviada especial ao Rio de Janeiro

A cadeira preta jaz solitária no meio do pequeno palco. A luz incide diretamente sobre o móvel. Cabelos presos, camisa branca e calça escura: Fernanda Montenegro entra e se senta.

As mãos postas entre as pernas se levantarão não mais de 30 graus para marcar a intenção da fala. Os ombros insinuarão avanços e recuos de poucos centímetros. São as únicas partes do corpo que a atriz moverá em 60 minutos de Viver Sem Tempos Mortos, em cartaz no Rio de Janeiro. Importam as palavras ditas com firmeza, a movimentação incessante da mente.

Fernanda, mulher, 80 anos, viúva de Fernando Torres, passa a se chamar "castor", apelido dado por Sartre a Si­­mone de Beauvoir – a quem, por obra do teatro e de sua insistência em negar a finitude humana, encontramos também septagenária e sozinha, revisando o amor e a vida. "O homem é uma realidade finita que existe por sua própria conta e risco" seria a frase-síntese do monólogo, dirigido com precisão por Felipe Hirsch e iluminado por Beto Bruel.

Simone de Beauvoir, feita perso­­na­­gem, expõe suas escolhas em primeira pessoa. A angústia inevitável de estar viva e absolutamente livre (sina humana) aparece calma diante da consciên­cia de não ter fugido ao desafio de exer­­cer a própria liberdade.

Rendidos, ouvimos as ideias de uma das mulheres mais lúcidas de que se tem notícia, condensadas com inteligência por Fernanda ao adaptá-las à cena. Seus pensamentos despertam a sede de liberdade, de escapar ao padrão repetido automaticamente e ousar uma vida que mereça uma assinatura própria, diferente de todas as outras.

Em meio à plateia absorta, alguém comenta que daria tudo para ter o texto da peça. Basta visitar uma livraria em busca dos escritos da autora francesa de O Segundo Sexo, para encontrar muito mais sobre o destino (não apenas) feminino do que cabe em uma hora de espetáculo.

E, ao mesmo tempo, não. Há na presença cênica de Fernanda uma humanidade que transcende a simples encenação ou a experiência da leitura. Atriz distinta e compenetrada, sua excelência está em se servir do domínio técnico rigoroso para atingir um estado de emoção adensado, um sopro de vida, e captar todos os olhos e ouvidos para o que diz, porque o faz com naturalidade e atenção ao significado e implicações de cada sentença.

Para quem não se importa em perder a surpresa (se é possível falar em surpresa nesse caso), o fim: extingue-se a luz sobre aquela mulher, uma centelha de vida se esvai, mais um corpo some no mundo. O que se fez dele antes desse momento derradeiro é o que conta. GGGG

  • Atualmente, como Simone de Beauvoir

Na noite passada, Fernanda Montenegro comemorou seus 80 anos provando novamente a inquietação e a insegurança que a tomam cada vez que sobe ao palco, por mais que seis décadas tenham se passado desde que experimentou essa sensação pela primeira vez. Dos primeiros passos como interprete, no fim dos anos 40, ainda atendendo pelo nome de Arlette Pinheiro na Rádio MEC, ao monólogo que atualmente ocupa seus fins de semana, Viver Sem Tempos Mortos, foram incontáveis papéis, que ajudaram a moldar a história da dramaturgia brasileira no teatro, na televisão e no cinema.

Fernanda começou adolescente, o imaginário habitado pelas narrativas hollywoodianas que via no cinema. Na Rádio MEC, se tornou apresentadora e escolheu o nome sob o qual se consagraria. Cercada de livros e músicas, que a enriqueciam culturalmente, cultivou sua primeira ferramenta como atriz: o domínio da voz. "Ela tem uma expressão vocal impactante. Em todas as atuações, consegue uma gama e uma modulação de sentimentos. É uma voz que passa imagens, e isso é muito forte", observa a crítica de teatro Tania Brandão.

Os anos 50 a levariam ao encontro definitivo com o teatro. Estreou em Alegres Canções nas Montanhas, de Julien Luchaire. Papel pequeno, mas que carregava bons presságios: havia sido feito, dez anos antes, por Cacilda Becker. A peça fracassou, Fernanda não. Sua atuação rendeu um convite para fazer teleteatro na TV Tupi, nos primórdios da televisão brasileira, junto de dois companheiros com quem teria convívio intenso, Sérgio Britto e o marido Fernando Torres (1927-2008).

Sua primeira grande mestre no teatro foi a francesa Henriette Morinau, com quem encenou quatro peças no ano de 1953. Naqueles tempos, conta Sérgio Britto, Millôr Fernandes já anunciava: "Querem saber quem é a melhor atriz brasileira? Assistam a Mulheres Feias, é Fernanda Montenegro".

Morinau lhe ensinou a disciplina. "Não era um teatro de arte, de grandes voos, mas profissional. Isso foi essencioal para a formação da Fernanda. Ela faz cada peça como se fosse um artesanato de requinte único, não vulgariza a arte em nenhum momento", diz Brandão, professora de História do Teatro Brasileiro na UniRio.

Dois anos mais tarde, a atriz alcançaria seu primeiro grande êxito, no grupo de Maria Della Costa, que lhe cedeu o papel principal em A Moratória, de Jorge Andrade. "Fer­­nanda era dona do espetáculo", lembra Sérgio Britto. "Ela foi aclamada pela imprensa, pela crítica, pelo público. As pessoas que assistiram a esse espetáculo até hoje comentam", acrescenta Tania.

Naquela companhia, conheceu o diretor italiano Gianni Ratto, que se tornaria o "deus" do teatro que ela, Torres e Britto almejavam. Seguiram-no até o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), cujo marco foi Vestir os Nus, momento dos mais memoráveis de que Britto se recorda, ao ver Fernanda convencer o público de que suas gargalhadas, causadas por um esbarrão sem querer entre os dois, eram soluços chorosos da personagem moribunda.

Havia chegado a hora de ditar o próprio caminho. Fernanda, o ma­­rido e Britto convenceram Rat­­to a criar o Teatro dos 7, em 59, inaugurando um novo período de formação. Com o diretor italiano, a atriz aprendeu a buscar um entendimen­­to mais profundo do texto, traduzindo-o em imagens cênicas. "É o centro do trabalho de interpretação dela até hoje", diz Tânia.

Os 7 ficaram juntos por sete anos, exigindo muito empenho pa­­ra pagar os custos das produções. Juntos, lançaram a peça O Beijo no Asfalto, escrita por Nelson Rodrigues especialmente para eles, em 1961. Foi um acontecimento histórico. Mais tarde, o anjo pornográfico entregaria nas mãos de Fernanda outro texto inédito, Toda Nudez Será Castigada, que ela teve de se recusar a fazer, pois estava grávida de Fernanda Torres.

Acabado o grupo dos 7, a atriz partiu em carreira-solo, sempre amparada pelo marido, seu produtor e eventual diretor. Nos anos 70 e 80, enfrentando as agruras de fa­­zer teatro durante a ditadura militar, encenou comédias e dramas, autores nacionais (como Millôr) e internacionais (Racine), ao mesmo tempo em que se aventurava pelo cinema e ganhava espaço na televisão. Tinha inclinação para o drama e para a poética realista. Raramente era vista em tragédias clássicas. Shakespeare, nunca fez.

Ficaram marcadas na memória de quem viu espetáculos como As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1982), dirigido por Celso Nunes. Era a história de uma figurinista que perdeu dois maridos, se apaixona por uma modelo, mas acaba sozinha. Britto lembra que encontrava Fernanda saindo de cena ainda tomada pela solidão de Petra.

Dona Doida, de 1987, concentrava poemas de Adélia Prado. The Flash and Crash Days, em 1993, dirigida pelo então genro Gerald Thomas, a colocou em cena com a filha. Em 1995, em Curitiba, com o apoio da prefeitura municipal, Fernanda fez Dias Felizes, de Samuel Beckett, com o corpo enterrado.

A carreira cinematográfica então se impôs, interrompendo a lida diária como teatro. Central do Brasil a tornou internacionalmente reconhecida, em 1998, e Fernanda começou a aproveitar os convites para estrelar outros longas nacionais. Não pisou mais no palco por oito anos, desde 2001. Enfim retornou.

Fernanda foi uma entre muitas de uma geração de grandes atrizes: Cacilda Becker, Tônia Carrero, Na­­thália Timberg, Beatriz Segall. Mas superou a todas pela persistência. Cacilda, de quem se dizia ser a maior delas, morreu cedo, em 1969. Tônia preferiu o teatro ligeiro. Nathália e Beatriz não mantiveram uma continuidade sobre os palcos. "Fernanda não parava para nada, fazia cinema, teatro, televisão, tinha filho e marido, tudo junto. Isso lhe deu uma projeção muito grande", analisa Tânia. "E um amadurecimento como intérprete inigualável."

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Serviço

Viver Sem Tempos Mortos. Teatro Fashion Mall (Estrada da Gávea, 899 – São Conrado, Rio de Janeiro), (21) 3322-2495. Textos de Simone de Beauvoir. Direção de Felipe Hirsch. Com Fernanda Montenegro. Quinta a sábado às 21h30 e domingo às 20 horas.R$ 80 a R$ 60. Até 31 de outubro. *A peça está cotada para vir a Curitiba, ainda sem previsão de data.

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