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Podia ser lúdica a intenção de Noel Rosa quando, em 1932, falou de uma "Mulher Indigesta" que merecia um "tijolo na testa". No contexto de hoje, no entanto, mesmo que o compositor esteja no Olimpo da música brasileira, dificilmente seus versos poderiam ser poupados de terem revelado seu sentido misógino. Assim como, de fato, não passou em branco a canção "Fricote", de Luiz Caldas, acusada de ter conteúdo racista, na década de 1980. E mesmo o polêmico Tim Maia, em "Vale Tudo", hoje decepciona muita gente que o tem como uma figura transgressora, já que, ali, a única coisa que não vale é "dançar homem com homem" ou "mulher com mulher".

Nas entrelinhas, de forma naturalizada ou assumida, são vários os casos desse tipo em expressões culturais variadas – de canções folclóricas e marchinhas de carnaval ao funk carioca ou à axé music – que apresentam conteúdos preconceituosos, reforço de estereótipos e valores que estão sendo combatidos por grupos sociais específicos. Em casos como o de Noel, é preciso considerar que foram criadas em uma conjuntura diferente. "Era normal em uma sociedade em que a mulher não estava no espaço público, mas deixa de ser considerado normal a partir do momento em que ela compartilha os mesmos espaços que os homens. O que muda é a avaliação", diz o cientista político da UFPR Emerson Cervi. Mas artistas continuam a reproduzir esses valores ainda hoje. Não por acaso, a deputada estadual da Bahia Luiza Maia (PT) criou um projeto que quer proibir o poder público de contratar artistas cujas músicas possam incentivar a violência e o preconceito contra as mulheres. Uma medida legítima, para Cervi, já que se trata de uma representante da sociedade que entende que o dinheiro público não deve ser dado a manifestações desse tipo – um caso diferente de uma intervenção do Estado em uma ação da iniciativa privada.

Espaços privilegiados

Mesmo que sejam consideradas livres expressões artísticas, produções como a música são passíveis de serem avaliadas socialmente. Para Cervi, é normal que haja reação. "Uma obra de arte serve para comunicar algo para a sociedade. Ela pode transmitir algo que a sociedade espera ou concorda, e não vai gerar críticas contundentes, ou pode ser criada pra chocar, e assim ser alvo de críticas", diz o cientista, para quem o nível da cultura democrática de uma sociedade é o que diz se obras que contrariem a opinião da maioria (seja em número ou poder) poderão circular ou não.

Não há como dizer em que medida a música pode influenciar ou refletir os valores culturais. "Não há instâncias que produzam todos os sentidos e significados que influenciam a sociedade", diz a professora de sociologia da UFPR Miriam Adelman. Mas há o que ela chama de "espaços privilegiados de disseminação" – e a cultura popular é um deles. "Se há nesses espaços a produção e a disseminação de discursos e valores que incitam ao ódio, ao desprezo ou à inferiorização de certos grupos sociais, isso precisa ter uma resposta. Mas a resposta não precisa ser censura", diz. Para Adelman, o ideal é estimular o apoio a grupos com discursos alternativos, de contestação. Uma sugestão são ações como observatórios de mídias. "Eles têm um papel de problematizar imagens e discursos que ferem a dignidade de determinados grupos. Seria uma forma mais interessante de estimular a conscientização", diz. Mas ela enfatiza: a noção do politicamente correto como uma caricatura não ajuda. "O conceito dos direitos humanos nos permite não facilitar espaços ao discurso do ódio e da violência", diz.

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