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"Jorge Amado fez pela projeção da nação brasileira mais do que todas as instituições diplomáticas juntas." A frase é do escritor moçambicano Mia Couto, em um discurso proferido em São Paulo, transcrito na coletânea de ensaios E Se Obama Fosse Africano? (Companhia das Letras, 2011). Assim como Mia Couto, muitos outros intelectuais africanos reconhecem o poder da literatura do escritor baiano, morto em 2001, na construção de uma imagem brasileira, uma brasilidade escancarada que, longe de ser exótica para os países lusófonos do continente além-mar, colaborou em muito para uma identificação entre nações irmãs. "Descobríamos essa nação num momento histórico em que nos faltava ser nação. O Brasil – tão cheio de África, tão cheio da nossa língua e da nossa religiosidade – nos entregava essa margem que nos faltava para sermos rio", completa Couto.

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Natural de Itabuna, o escritor, cujo centenário é comemorado amanhã, é dono de uma vasta obra que, de acordo com a Fundação Casa de Jorge Amado, de Salvador, foi traduzida em mais de cinquenta países e em 49 idiomas — talvez um dos autores brasileiros mais consumidos no estrangeiro em sua época, junto com o gaúcho Erico Verissimo. E, ainda assim, dotado de um universo muito nosso, permeado pela cultura negra, pela ginga baiana e pelas cores tropicais que podem causar estranhamento mesmo para algumas regiões distantes dessa realidade.

O professor Gildeci Leite, da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), que estudou a fundo a obra de Amado, diz que o fio condutor que dá a seus livros a unidade nacional responsável pelo fenômeno que se tornou é, justamente, a cultura afro-brasileira: "A influência dos negros em todas as partes do Brasil ajudou a aproximar a literatura de Jorge Amado a todos os cantos do Brasil, e, entre os acadêmicos de hoje, entender essa cultura passou a ser um ponto fundamental no entendimento do escritor." Ele explica que o entendimento dos mitos afro-brasileiros são fundamentais nos livros de Jorge Amado. "Ele refletia em suas obras seus aprendizados nos terreiros de candomblé. Por exemplo, os três personagens masculinos mais importantes de sua obra, Quincas Berro d’Água [de A Morte de Quincas Berro d’Água], Pedro Arcanjo [de Tenda dos Milagres] e Vadinho [de Dona Flor e Seus Dois Maridos] são todos filhos de Exu, que é o patrono da sexualidade, e, por isso, o sexo toma parte importante em suas histórias. Gabriela [de Gabriela, Cravo e Canela] é uma retirante que chega a Ilhéus e domina a culinária local melhor que as nativas. Mais do que uma negação do determinismo geográfico, o ofício de cozinheira de Gabriela é sinônimo de poder no candomblé."

Queda de popularidade?

As comemorações referentes a seu centenário em Ilhéus e em Salvador incluem exposições, peças de teatro, colóquios e exibições de filmes e séries baseados em seus romances. Para alguns, entretanto, a atenção direta que o escritor recebe é considerada excepcional nos últimos anos. Durante a última edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em uma mesa-redonda com o conterrâneo de Amado, o acadêmico João Ubaldo Ribeiro e o dramaturgo Walcyr Carrasco, responsável pela atual adaptação televisiva de Gabriela, Cravo e Canela, levantou-se a hipótese de que o romancista baiano teria perdido a expressividade ante as novas gerações de leitores, e não seria mais tão lido assim.

Ainda que a sugestão tenha ficado sem resposta dos dois intelectuais, uma vaga culpa recaiu sobre o tratamento dado pela escola às obras literárias. Embora acredite que o problema seja muito mais amplo, com a predileção da população por obras multimídia, que facilitam a recepção, Gildeci Leite concorda. "É função da academia preparar os professores para lidar com a obra dele e com a cultura e a religiosidade afro-brasileira, ainda vista como bizarra e diabólica pelas escolas. A editora também peca por não investir em materiais paradidáticos que o estimulem corretamente dentro da sala de aula."

O professor aponta ainda as constantes bordoadas da crítica. "A esquerda o criticou quando saiu do Partido Comunista por saber das atrocidades de Stalin, a direita o criticou por dar voz ao povo, o que poderia incitar uma inconformidade nada favorável para o poder, e os movimentos negros também o acusaram de criar estereótipos, sendo que tudo não passa de definição de cultura."

Mesmo assim, Jorge Amado não deixa de ser um fenômeno de vendas, por sua linguagem ao mesmo tempo poética e acessível. "Ele tem essa coisa do riso fácil, do sexo, que encanta e atrai a todos. A partir daí, é preciso fazer uma verticalização de sua obra, que se desdobra em leituras mais profundas."

Para a diretora da Fundação Casa de Jorge Amado, Myrian Fraga, o maior legado da obra de Amado para as novas gerações foi o elo forte com a cultura popular, "introduzindo assuntos que até então tinham sido ignorados, como miscigenação, preconceito, liberdade religiosa, ecologia, direitos humanos", e completa assegurando a atemporalidade de sua obra: "a Bahia de Jorge Amado é criação de um romancista, mas sem deixar de ser também fruto de uma sensibilidade permanentemente antenada com a realidade que se projeta além do tempo e das circunstâncias. Essa Bahia existe a partir do reconhecimento de que a obra de um escritor é feita da observação, da vivência e da imaginação."

CADERNO G | 1:01

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