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"...Aquilo que milhões vivenciaram nos últimos anos da guerra, uma humilhação nacional sem precedente, nunca foi realmente traduzido em palavras, não tendo sido nem compartilhado entre os diretamente atingidos, nem transmitido por eles ao que nasceram depois.

...Parece que nós, alemães, somos hoje um povo estranhamente cego para a história e despojado de tradição. Não temos um interesse apaixonado pelas nossas antigas formas de vida nem pelas especificidades da nossa própria civilização, como se nota, por exemplo, na cultura da Grã-Bretanha. E quando olhamos para o passado, em particular para os anos de 1930 até 1950, trata-se sempre de um olhar e um desviar de olhos simultaneamente."

Trecho de Guerra Aérea e Literatura, de W. G. Sebald.

Em 1997, o escritor e professor alemão W. G. Sebald foi convidado a fazer uma conferência em Zurique, na Suíça, sobre literatura. Pensador muito interessado no tema da memória, ele tentou demonstrar que os horrores da Segunda Guerra Mundial eram parte de suas lembranças, apesar de ter nascido após o fim do conflito e que o mesmo devia acontecer com várias gerações de compatriotas. A esta análise pessoal, ele acrescentou uma questão mais ampla, que o impressionava: por que os escritores alemães não descreveram em suas obras a experiência mais violenta que viveram durante o conflito, que foi a guerra aérea, que destruiu suas cidades.

A guerra aérea foi a estratégia usada pelos aliados para enfraquecer os nazistas em casa. Estratégia pensada para destruir cidades, mesmo que significasse a morte de muitos civis, os ataques aéreos destruíram 3,5 milhões de residências e deixaram 7,5 milhões de desabrigados. Só a força aérea britânica fez 400 mil voos para lançar um milhão de toneladas de bombas sobre 131 cidades alemãs (são números citados por Sebald logo no início do livro). Os bombardeios incendiavam as cidades, provocam ondas de fogo – para a população civil, era como experimentar o inferno em vida.

A pergunta que Sebald se fazia é porque não havia descrições da experiência vivida pela população alemã durante os bombardeios. Naturalmente os alemães sabiam que não podiam se colocar na posição de vítimas: afinal a guerra que se espalhava pelo mundo havia sido desencadeada por eles. De qualquer forma, fosse como experiência individual ou como fato relevante na trajetória das nações, a guerra aérea era uma "ação de aniquilamento, até então sem par na história". E mais, a experiência gigantesca que devia ter influenciado no comportamento do povo alemão nas décadas seguintes não foi registrada na proporção do seu impacto nem pela literatura nem pelo jornalismo, argumentava.

Sebald discorreu sobre o tema em Zurique, listando os poucos textos sobre o tema que encontrou na Alemanha, nenhum deles de grande repercussão. Ele notou que o que os alemães fizeram foi se atirar ao trabalho de reconstruir o país e agir como se a História tivesse começado neste ponto: na reconstrução. Diz Sebald: "Esta destruição total não se apresenta, portanto, como a terrível conclusão de uma aberração coletiva, mas, por assim, dizer, como o primeiro estágio de uma reconstrução bem-sucedida". Ou seja, o peso do passado era tão grande – fosse pela culpa, pela dor ou pelo questionamento sobre quem era esse povo que foi capaz de tamanho delírio – que foi mais fácil agir como se parte dele não tivesse existido. Os alemães não podiam fugir da responsabilidade (o resto do mundo não deixaria, de qualquer forma). Mas podiam enterrar suas próprias experiências dolorosas.

Em nenhum momento, Sebald vitimiza os alemães. Guerra Aérea e Literatura não é um livro com propostas ideológicas e políticas. Ele inclusive reproduz uma fala de Hitler em que o führer fala com entusiasmo da proposta de destruir Londres em um gigantesco bombardeiro aéreo ("...focos de incêndio em toda parte. Milhares deles. Eles vão se juntar então em um gigantesco incêndio de superfície."). O que o respeitado escritor, autor de Austerlitz, faz é um ensaio em busca de memórias que desapareceram. Ele age como um psicanalista que quer cutucar o paciente que não vê problemas em nunca pensar sobre uma situação traumática que viveu. Como o psicanalista, Sebald tem certeza de que trauma tem consequências. Ele diz que os alemães criaram um" isolamento sanitário" na memória e que os escritores, por sua vez, estavam muito ocupados tentando construir uma imagem positiva para si mesmos, uma imagem que os distanciasse da barbárie recente.

Fica, das indagações de Sebald, uma questão que pode ser desconectada do contexto alemão e aplicada a outros lugares e períodos históricos: pode o ser humano que se vê no centro de uma grande tragédia retratá-la em toda sua extensão?

Serviço:

Guerra Aérea e Literatura. W. G. Sebald. Companhia das Letras. 130 págs. R$ 35. Ensaio.

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