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Não há nada pior do que teatro filmado. Textos pensados e criados para o palco sempre foram uma das principais fontes de inspiração para o cinema, mas quando a adaptação falha na missão de transpor para o universo das imagens em movimento o que foi pensado para ser representado numa casa de espetáculos, o resultado é frustrante. As falas soam artificiais, excessivamente retóricas, a narrativa torna-se lenta, pouco fluente, e, geralmente, o espetáculo proporciona a sensação de que as duas linguagens, embora interligadas historicamente, foram confundidas sem que isso seja um traço estilístico ou autoral intencional, como é o caso de Dogville, filme do dinamarquês Lars von Trier, por exemplo.

Apesar de tudo isso, o teatro continua muito presente no cinema, seja fornecendo textos a serem transpostos para a tela, ou como ponto de partida temático. Esse é o caso da ótima comédia dramática A Bela do Palco, de Richard Eyre, diretor do premiado Iris, cinebiografia da escritora Iris Murdoch.

Na Londres do século 17, o Betterton Theater atrai multidões que desejam ver de perto "a mais bela mulher" morrer no papel de Desdêmona, a injustiçada esposa sob suspeita do mouro Otelo, no clássico de William Shakespeare. O detalhe que faz toda a diferença para o enredo do filme, e para o público dos dias de hoje, é o fato de a estrela do espetáculo ser, na verdade, um ator, Edward "Ned" Kynaston, vivido com maestria pelo subestimado Billy Crudup (de Quase Famosos).

Para o astro, que construiu uma sólida carreira interpretando as grandes personagens femininas de Shakespeare, seus maneirismos de voz e gestos são tudo na materialização da fantasia de que seja, de fato, uma mulher. "Eles querem a ilusão", justifica Ned.

Essa certeza, no entanto, se vê abalada quando o então rei da Inglaterra, Charles II (Rupert Everett, em atuação hilariante), decide, por imposição de sua voluntariosa amante, uma atriz vulgar porém esperta, impedir que homens continuem a desempenhar papéis de mulher. A determinação é um golpe mortal para Ned, que se julga incapaz de encarnar personagens masculinos.

Ao mesmo tempo em que a carreira de "estrela" de Ned parece estar com os dias contados, o decreto real é o sinal verde para que nasça uma estrela, Maria (Claire Danes, de Tudo em Família), ninguém menos do que a dedicada camareira pessoal do exasperado ator. De tanto vê-lo interpretar Desdêmona e Ofélia (de Hamlet), entre outras, a criada tem decoradas todas as falas. Tanto que ganha trocados em montagens clandestinas encenadas nas tavernas da cidade, onde permitem que mulheres vivam essas heroínas.

Nas mãos de Richard Eyre, esse argumento no mínimo instigante, ganha as dimensões de uma comédia no sentido mais clássico do gênero, ao mesmo tempo leve e transcendente, evocando algumas reflexões pertinentes sobre o papel da arte, o jogo de poder entre homens e mulheres e a história da arte.

A Bela do Palco também é uma discussão bastante interessante sobre amor e sexualidade – condicionado a sempre viver heroínas do palco, Ned não sabe ao certo como direcionar seu desejo, já que, por conta de sua celebridade, é cobiçado por homens e mulheres na mesma proporção e intensidade.

O filme de Eyre, por último, é uma emocionante homenagem ao teatro, um tributo aos atores e a seu ofício. Assim como o oscarizado Shakespeare Apaixonado, de John Madden. Mas, ao contrário do que se possa pensar, não se confunde com a linguagem dos palcos. É cinema. E dos bons. GGGG

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