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Ex-relojoeiro e marceneiro bissexto, Cristovão Tezza nasceu em Santa Catarina 53 anos atrás. Curitibano desde criancinha – veio para o Paraná aos 10 anos –, assume a condição de atleticano, cinéfilo, musicófilo e leitor. É conhecido por ter um bom humor quase inabalável – que só não resiste a bancos, telemarketing e empresas de telefonia.

Com o fechamento da Cinco em Ponto, loja de consertos de relógio de Antonina, Tezza experimentou outras ocupações. Foi iluminador, dramaturgo, ator e diretor de teatro, além de ter se aventurado como mochileiro pela Europa dos anos 70. Nessa mesma década, escreveu O Papagaio Que Morreu de Câncer, que pode ser encarado como a gênese do escritor que, em 2005, conquistou atenção de público e crítica como nunca antes. O alvo: seu 11.º romance publicado, O Fotógrafo, vencedor do Prêmio Bravo! na categoria literatura, do prêmio Machado de Assis de livro do ano, atribuído pela Academia Brasileira de Letras, e finalista do Jabuti e do Portugal Telecom.

Na entrevista que segue, o escritor "entranhadamente curitibano" fala sobre futebol, diz que não leva o cinema muito a sério e revela o tema de seu próximo livro.

Gazeta do Povo – O que falta acontecer a você?Cristovão Tezza – Do ponto de vista prático, falta eu viver dos meus livros, o que a essa altura seria muito bom. Do ponto de vista do ofício de escrever, tenho sempre uma sensação de carência, de "falta tudo". A ficção, justamente por ser um trabalho não solicitado e uma aposta no escuro, parece que jamais está sob controle.

Dá para falar de 2005 como uma espécie de "Ano Cristovão Tezza". Você poderia, por favor, fazer um balanço das venturas e desventuras que viveu de janeiro para cá? Este foi o grande ano de sua carreira?Acho que o grande ano da minha vida de escritor foi 1988, quando enfim saiu Trapo, depois de seis anos de espera, e apareci nacionalmente. Quer dizer, os problemas operacionais de quem escreve, o desespero de quem começa, tais como conseguir editora ou ser minimamente ouvido pela crítica, desapareceram. Mas é verdade que, com O Fotógrafo, passei por uma espécie de "legitimação social", esse processo misterioso pelo qual um artista recebe um "certificado de aceitação" de instâncias tacitamente reconhecidas. Todo artista vive a angústia dessa passagem, que é sempre mais ou menos lotérica e acidental. Às vezes não acontece nunca. Foi uma trajetória inesperada. O livro teve um lançamento chinfrim, em novembro de 2004, levou logo umas pauladas críticas, enfrentou o eterno problema de distribuição – não se acha em livraria nenhuma – e, pouco a pouco, começou a entrar na lista de finalistas dos mais importantes concursos literários do Brasil, como o Jabuti, o Portugal Telecom, o da revista Bravo! e o de Passo Fundo. Ao mesmo tempo, a resposta dos leitores começou a me surpreender – percebi que o livro estava "pegando". Desde Trapo não sentia nos leitores uma empatia tão forte como em O Fotógrafo. Súbito, saiu o prêmio de melhor obra de ficção da Academia Brasileira de Letras, em seguida o prêmio Bravo!, e entre um e outro um dos prêmios Jabuti. Não fosse eu calejado em perder concurso, já dava até para me sentir o rei da cocada preta! (risos)

Às vezes, parece que quanto mais repercussão um escritor consegue, mais demora para lançar um novo trabalho porque a responsabilidade aumenta. Você concorda com essa afirmação?No meu caso, não. Sou de fato meio autista no meu processo de escrever – tenho meu ritmo próprio e a resposta social ao que escrevo nunca me afetou. Na época do Trapo, cheguei a ter três livros prontos na gaveta e continuei escrevendo. O que houve – e, como bom curitibano, já estou me sentindo culpado! – é que não escrevi nada em 2005. Além das aulas na universidade, passei viajando, dando palestra, badalando em eventos, usando terno e gravata, saindo na fotografia e vivendo de fama (risos) e com isso não escrevi praticamente nada. Vamos ver se ano que vem eu sossego um pouco.

Você já trabalha no sucessor de O Fotógrafo?Sim, tenho algumas poucas páginas escritas que pretendo retomar logo. É um ensaio ficcional sobre a experiência de ter um filho especial. Meu filho tem síndrome de Down e jamais escrevi sobre isso. Acho que agora estou maduro para enfrentar o tema. É um livro muito difícil. Em seguida, quero mergulhar noutro romance, de que só tenho duas ou três imagens na cabeça. Algo sobre cinema. E quero experimentar um pouco mais o texto curto, o conto, um gênero que em geral evito – conto só escrevo sob encomenda.

Embora tenha nascido em Santa Catarina, você vive em Curitiba há bastante tempo – ouvi dizer até que é atleticano roxo. Como descreveria sua relação com Curitiba?O Clube Atlético Paranaense é uma das grandes alegrias da minha vida. A gente sofre – como no começo do campeonato, aquela enfiada trágica de derrotas – mas depois é recompensado pela vibração do time, essa incrível capacidade de recuperação. Eu gosto desse lado passional do Atlético, como se a camisa tivesse mesmo, magicamente, uma personalidade particular. Futebol é minha catarse. E lamentei sinceramente a queda do Coxa. Para nós, um brasileirão sem um atletiba não é a mesma coisa. Sobre a cidade de Curitiba, já estou há tantos e tantos anos aqui, já sou tão entranhadamente curitibano, que nem lembro mais que ela é uma cidade refratária. Adoro meus sete amigos, pedir pizza por telefone e jamais visitar alguém sem telefonar antes.

Em meio às peculiaridades do curitibano, existe alguma que apareça com freqüência em seus livros?Certamente que sim – mas na ficção essa "atmosfera curitibana" vai se diluindo em cada frase. Não há nada visivelmente notável em Curitiba – uma praia, um porto, uma montanha de três mil metros de altura, uma grande mina de carvão, um abismo, terremotos, enchentes devastadoras, engarrafamentos de 50 quilômetros. Não há nem mesmo um único rio que mereça esse nome. Nem carnaval. Nada. Sobra todo o resto, que somos nós. Aqui não nos distraímos com coisa alguma. Isso é o filé mignon da literatura.

Você é um aficionado por músicas e filmes, o que de mais interessante tem ouvido e assistido?Sou um ouvinte e um espectador caótico, ouço e vejo um pouco de tudo. Gosto especialmente de blues e jazz. De filmes, vejo quase um por dia – o cinema para mim é um estimulante literário. Mas não levo o cinema muito a sério – a gente vive uma massa tão grande e devastadora de envolvimento visual que nos perdemos nela. O cinema não aprofunda nada, não é esse seu terreno (por isso são tão inúteis os cineastas filósofos), mas tem uma capacidade brutal, verdadeiramente anestésica, de substituir a realidade. Aliás, ele nos substitui por inteiro. Nosso imaginário é inteiro teletransportado. A cultura visual que o cinema, em apenas cem anos, implantou irremediavelmente nos nossos corações e mentes, é quase que a única que existe, virou o nosso parâmetro de medida de todas as coisas. O que me deixa tranqüilo é que, para sustentar essa fantástica fábrica de chocolate, sempre haverá necessidade de alguém que saiba ler e escrever, a aristocracia que restou.

E na literatura, qual é o seu livro de cabeceira hoje?Estou terminando de ler Heidegger, uma biografia maravilhosa do filósofo alemão, escrita por R. Safranski. Mas sempre tenho ficção na cabeceira: terminei Um Amor Anarquista, uma narrativa saborosa do Miguel Sanches, e começo em seguida a ler Sábado, do Ian McEwan, um romancista que me agrada muito. De poesia, releio sempre Paulo Henriques Britto, para afinar o ouvido.

Quando a marcenaria virou um hobby? O que o atrai no ofício?A necessidade faz a perícia. Vinte anos atrás me mudei para um sobradinho na Fazendinha, com pouco dinheiro e 700 livros no chão. Desde lá virei um fazedor de estantes. Fui aprendendo. Sempre tive gosto pelo trabalho manual – minha primeira profissão foi consertar relógios. Mas eu gostaria de ter mais tempo livre.

Fora uma derrota do Atlético, o que acaba com o seu bom humor?Lidar com bancos em geral, agüentar telemarketing oferecendo cartão de crédito como se fosse um presente e tentar me comunicar com empresas de telefonia. Essas então despertam meus instintos mais homicidas. Até é bom que a conversa não seja no balcão. O engraçado é que ainda sou o último brasileiro que não usa celular.

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