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Mais uma vez, Miguel Sanches Neto é notícia. Seu livro novo, Um Amor Anarquista (Record, 256 págs., R$ 29,90), o quarto que lança este ano, caiu nas graças da imprensa nacional – todos falam dele e a Veja da semana passada deu ao autor o título de "melhor de sua geração".

Depois de imaginar um planeta ideal em Estatuto de um Novo Mundo para Crianças, falar sobre anatomia com A Amanda Vai Amamentar e retornar à poesia no Venho de um País Obscuro e Outros Poemas, Sanches Neto parte de uma experiência real – a Colônia Cecília, estabelecida em Palmeira (PR) na última década do século 19 – para contar a história de amor entre Adele e Giovanni Rossi, e de ambos pelo ideal anarcossocialista.

"Quis fazer um romance sobre a imperfeição dos projetos humanos", diz o escritor paranaense e colunista da Gazeta do Povo. Confira, a seguir, os melhores momentos da entrevista.

Caderno G – Um Amor Anarquista fala sobre desilusão. Retrata, de certa forma, o colapso de um ideal, o socialista. Você já teve alguma decepção desse tipo, de natureza ideológica?

Miguel Sanches Neto – Eu tive uma militância política na juventude e logo que me formei estava engajado na luta pelos professores. Durante mais de dez anos me dediquei a isso, enquanto lia autores de esquerda, mas nunca cheguei a me filiar a nenhum partido, embora quase tenha sido, nos idos de 80, fundador do PT em Peabiru. Quando você tem sensibilidade para questões humanas e um olhar crítico, você se desilude mais rápido. Aos poucos, fui percebendo que meu papel era desconstruir miragens e não vendê-las. Hoje, sou um cético em relação à política. A lógica do lucro tomou conta de tudo. Eu prefiro ficar em meu canto, longe da política e perto dos livros. Agora, Um Amor Anarquista não quer representar a falência política, mas como uma força imprevisível, incontrolável, ilógica, a paixão, altera as crenças mais profundas.

Talvez por tratar de idéias socialistas, o romance permita analogias com a situação calamitosa da política brasileira atual. Isso é algo que o incomoda?

O livro foi escrito antes da crise, no verão de 2004, e elaborado a partir de 1994. Ou seja, não tem nenhuma ligação direta com a política atual. Eu não posso controlar as leituras que serão feitas. Só posso garantir que não pensei no cenário atual para produzir o livro, parti de uma constatação de Simone de Beauvoir em suas memórias. Ela diz que depois de um casamento aberto, de vários casos que teve e das aventuras extraconjugais de Sartre, ela chegava ao fim da vida enganada. Eu entendi que ela amava tanto o marido que tudo que ela queria era ser correspondida neste amor. E viveu um grande casamento liberal como forma de ser fiel a seu marido e às idéias que os dois comungavam. Quando eu li isso, encontrei a chave do romance de Giovanni Rossi e Adele.

Na sua opinião, existe no mundo de hoje uma idéia pela qual vale a pena se sacrificar, mais ou menos como fizeram os personagens do livro – em nome da anarquia socialista – no fim do século 19?

Para mim, só tem duas frentes de batalhas. A luta pela educação de qualidade, principalmente nos primeiros anos escolares , e a luta pelo controle ambiental. São as duas únicas coisas que contam de verdade hoje. Tudo o mais é secundário. Mas eu não me filiaria a nenhuma organização ou partido para defender isso.

Quando e como foi a primeira vez em que ouviu falar da Colônia Cecília?

Sempre ouvi falar sobre a colônia, não sei precisar a data, por causa talvez das memórias de Zélia Gattai, Anarquistas, Graças a Deus!. Mas o primeiro contato direto com o tema foi em 1994, quando comecei a trabalhar no livro do dr. Mello (o médico Cândido de Mello Neto), que foi redescobridor da colônia. A partir daí, fui me inteirando do tema, fazendo anotações, conversando com pessoas. Sempre me interessava mais o cotidiano da colônia do que a ideologia.

E de que forma percebeu que ela poderia render um livro?

Pela contradição que havia na vida do Rossi. O defensor do amor livre, o homem que pregava a destruição total do casamento, do poder patriarcal, da paternidade, este homem culto e com um pensamento científico, que tinha resposta para todas as crises sociais vividas naquela época, intelectual respeitado no meio anarquista da Itália, acaba a vida dentro de um casamento burguês, vivendo com a mulher que ele compartilhou com outros homens para provar que sob o anarquismo não existe mais o conceito de núcleo, de centro, que as partes se relacionam livremente. É uma contradição muito grande e guardava alguns possíveis narrativos fortes. Eu comecei a intuir, a imaginar os dramas para fazer a passagem das idéias para os sentimentos. Fui encontrando indícios nos textos históricos, selecionando os mais significativos e compondo a narrativa a partir destas contradições. O desafio era fazer um romance que prendesse o leitor, que não defendesse tese nenhuma, que fosse uma pungente história de amor.

O que difere os idealistas do resto do mundo?

Os idealistas é que movem o mundo, mesmo quando fracassam. De um ponto de vista prático, das ações ordinárias, do dia-a-dia, do sucesso, Jesus Cristo fracassou, Gandhi fracassou, Che Guevara fracassou. Mas ficaram os exemplos luminosos deles. É aí que se dá a transcendência de suas ações. Elas vão muito além da realidade, figuram como sinalizadores religiosos, morais, intelectuais. Os idealistas mantêm viva nossa capacidade de mudança, mesmo diante da falência de suas ações.

Cinco anos separam Um Amor Anarquista de seu romance anterior – que foi também o primeiro –, Chove sobre Minha Infância. O que mudou no escritor Miguel Sanches Neto nessa meia década?

Eu acho que estou escrevendo melhor, tive minha capacidade de fabulação ampliada. No Chove sobre Minha Infância, eu me vali da estrutura da crônica para produzir um romance. Foi mais fácil, bastou apenas tomar cada capítulo como uma crônica, estruturar tudo de forma que tivesse um sentido global. Agora não, tive que criar a partir de uma situação muito distante de mim. Eu exerci ao máximo minha vocação de romancista, sem nenhuma concessão ao cronista. Eu gosto de meu primeiro livro, acho que é um texto muito forte. Mas o de agora é mais elaborado. Eu estendi mais as frases, os parágrafos, busquei uma mescla de tempos verbais, criei uma variação de linguagem maior.

Você teme que sua carreira de escritor – consolidada a cada livro – possa, um dia, obrigá-lo a largar a função de crítico literário?

Jamais. Eu estreei como poeta, depois fiz crítica e crônica, passei a produzir contos, depois fiz o primeiro romance. Eu sou tudo ao mesmo tempo. Isso desagrada as pessoas, mas acho impensável viver sem comentar os bons livros. Seria uma violência contra minha natureza.

Como você equilibra as duas tarefas?

Comentar livros é como escovar os dentes, acompanhar o noticiário, fazer a caminhada diária. Está incrustado em meu dia-a-dia, como uma tarefa qualquer. Sem a crítica, minha rotina ficaria prejudicada. Nunca passo um dia sem ler minhas tantas páginas e fazer alguma anotação. É como tomar meus comprimidos pela manhã. Dependo disso para me sentir vivo. Escrever um poema ou um conto é como ir a uma festa. É coisa mais rara, traz um outro prazer, o da novidade. Agora, escrever um romance é tirar férias, visitar um lugar ou um país, é negar o cotidiano. Para minha vida ser completa, tenho que ter todos estes momentos.

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