
Se você é daqueles que recorda com frequência como era verde o seu vale, que era feliz, sabia disso perfeitamente e tem nostalgia de um passado que não vai voltar, então se passa com você o mesmo que com o protagonista da mais recente comédia de Woody Allen, Meia-Noite em Paris (confira trailer, fotos e horários das sessões; atenção à data de validade da programação em cinza). O filme chega hoje aos cinemas brasileiros no maior circuito de salas já montado para qualquer outro filme do cineasta. A ambição da distribuidora se justifica plenamente.
Muitos cinéfilos mais radicais, daquela empedernida legião de fãs de carteirinha do cinema de Allen, vão curtir este originalíssimo Meia-noite em Paris com enorme e renovado prazer. A história recupera muito das características próprias de seu estilo clássico são 97 cópias, em 35 cidades. Owen Wilson, que reencarna o espírito dos personagens interpretados pelo próprio diretor ao longo de sua filmografia, vive aqui o roteirista e escritor Gil, ao mesmo tempo saudoso e melancólico, que sonha com a Paris do final do século 19 e nos revolucionários anos 1920. Tempo de noites infinitas, quando os intelectuais mais importantes do momento se reuniam em festas intermináveis debatendo as artes e a condição humana. Tempo de indissociáveis vapores etílicos a embalar romances nos bares enfumaçados. Tempo em que se promulgava uma bela e estetizada autodestruição, quando Paris era uma festa permanente.
Túnel do tempo
O protagonista passa uma temporada em Paris com a cética e realista noiva Inez (Rachel McAdams), e com os pragmáticos pais dela que, naturalmente, desaprovam um futuro genro escritor que trafega na contramão do ideário capitalista. Fascinado pelo romantismo da cidade, perdido em sonhos sob a chuva à procura dos restos de um paraíso perdido, certa noite Gil embarca numa fantástica aventura que o colocará frente a frente com Scott Fitzgerald e sua mulher Zelda. Incrédulo de início, logo se dá conta de que os anos dourados estão à sua frente, em carne e osso, assumindo a identidade de Hemingway, Picasso, Dali, Buñuel, Gertrude Stein e outros mitos das artes. Com eles, todas as noites, como Cinderela, o personagem passa a viver o furor e a exaltação desta viagem no tempo, que reserva ainda o fascínio pela bela Adriana (Marion Cotillard).
Com Meia-noite em Paris, solidamente apoiado na rejuvenescida imaginação e naquele velho sarcasmo agora reciclado, Allen rende homenagem ao poder e à sobrevivência das artes, bem como ao idealismo. Neste ameno e ao mesmo tempo crítico exercício de nostalgia, o cineasta observa com ironia e humor a belle époque parisiense e mostra que tudo aquilo que os contemporâneos sonham, canonizando o tempo perdido, outros já fizeram em épocas diferentes.
Como tinha demonstrado há 26 anos em A Rosa Púrpura do Cairo, a tênue fronteira que separa realidade de ficção pode ser cruzada, sempre e quando se esteja consciente de suas possíveis consequências. Embora fale novamente de seus temas recorrentes o amor que nunca se encontra plenamente ou a arte como sucedâneo do vazio existencial , o tom de Allen é mais ligeiro do que em outras ocasiões, e a opção pelo divertissement é evidente. Até porque, neste território, é possível alcançar uma certa felicidade.



