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Em 1927 o dia 6 de março caiu num domingo, e em Aracataca, um povoado perdido nos confins do Caribe colombiano, despencava um aguaceiro impiedoso. Ao som da tormenta, Gabriel García Márquez nasceu às oito e meia daquela manhã na casa de seu avô materno, o coronel Nicolás Márquez Mejía, que naquela hora estava na igreja, acompanhando a missa das oito.

Aracataca era uma cidadezinha de nada, plantada em meio a extensos bananais. Seus dias eram de um calor sem fim, sufocados por nuvens de poeira. Em muito do que escreveu, ele recorda aquele sol da infância – um sol tão inclemente em sua claridade, que os girassóis não sabiam para onde girar. E não havia chuva: eram tormentas, aguaceiros extraviados de tempestades tropicais.

Nesta paisagem transbordante de cores e calores Gabriel García Márquez passou seus primeiros oito anos – tempo suficiente para amealhar uma memória desmesurada e perene, e também para descobrir o mundo e suas coisas a partir do casarão do coronel, onde vivia cercado por mulheres, pelas histórias de fantasmas contadas por sua avó e pelas lembranças de guerra de seu avô.

Dessa infância, desse pequeno universo íntimo, surgiu não apenas sua escrita, mas a maneira de compreender a vida, de ver e abraçar essa realidade transbordante que é a América Latina. Foi ele um dos primeiros a entender que nestas nossas comarcas, a realidade é muito mais delirante que a mais delirante das imaginações.

Em tudo que escreveu e escreve ele soube, melhor que ninguém, traduzir essa marca tão forte e profunda. Disse e redisse infinidades de vezes que não há uma só linha de toda a sua escrita que não tenha tido como ponto de partida a realidade. No discurso que escreveu quando ganhou o Nobel de Literatura, em 1982, explicou que realidade é essa: "Não a que está no papel, mas a que vive conosco e determina cada instante de nossas incontáveis mortes cotidianas, e sustenta um manancial inesgotável de criação, pleno de desdita e de beleza". E arrematava: "Este é, amigos, o nó da nossa solidão".

Da mesma forma que em tudo que García Márquez escreveu a América Latina está presente como matéria prima e cenário intangível e permanente, também a idéia de romper fronteiras entre o que se supõe real e o que se supõe imaginação surge a cada passo, como para recordar que somos capazes, a partir justamente da nossa imaginação coletiva, de avançar contra essa realidade e transformá-la. Uma espécie de reflexo, carregado de contundente lirismo, daquilo que disseram outros latino-americanos de olhar afiado: em nossos países, nada do que acontece é resultado de um destino malvado, e sim de um sistema injusto, que impede que sejamos o que poderíamos – e deveríamos – ser.

Em um de seus contos – "Os Funerais da Mamãe Grande" – a certa altura um personagem diz que está na hora de começar a contar a história, "antes que cheguem os historiadores". Ou seja: a hora de antecipar a voz da memória popular, coletiva, à da história oficial. Pois essa voz coletiva, essa memória profunda e multitudinária, foi o que García Márquez buscou – e encontrou.

Pela vida afora, continuou apegado a alguns de seus temas recorrentes. Persiste em se agarrar na certeza mais absoluta de que a raça humana é capaz de sobreviver às piores catástrofes, inclusive as que ela mesma gera em seus afãs demenciais de ganância. Continua obcecado pela fé na possibilidade de existirem outras formas de se viver – mais justas, menos absurdas, mais dignas. Continua reivindicando, para todos aqueles que parecem condenados a cem anos de solidão, uma segunda oportunidade sobre a Terra. Para os humilhados, os ofendidos, os sem-nada que erguem, em seus sonhos e esperanças, um outro mundo possível.

Verdade da alma

O mexicano Juan Rulfo, mestre de mestres – inclusive do próprio García Márquez – dizia que começou a escrever para derrotar a solidão. García Márquez diz que escreve para fazer com que seus amigos gostem dele ainda mais. "Nunca, em nenhuma circunstância, esqueci que, na verdade da minha alma, não sou nem jamais serei ninguém mais que um dos dezesseis filhos do telegrafista de Aracataca", repete sempre.

Da mesma Aracataca ele trouxe um universo exuberante e poético a não mais poder, que na sora o mundo e, assim, traduziu, como ninguém, a alegria e a dor de haver nascido e vivido na América Latina. Se a raiz de sua escrita está na infância, ao longo da vida ele buscou a memória mais profunda, e refletiu e revelou a esperança coletiva deste continente de contradições eternas.

A solidão, sempre

Certa vez, depois de um almoço sem fim, García Márquez me disse que um escritor não faz outra coisa além de escrever o mesmo livro, de diferentes formas, a vida inteira.

Acho que ele tem razão. Todos os seus livros são livros da solidão, e da busca desesperada de uma segunda oportunidade sobre a Terra. E também livros reveladores da infinita capacidade de poesia contida na vida humana.

O resto é o resto, resultado de sua tenacidade na procura da palavra exata, da arquitetura ousada e delicada de cada frase, da busca da respiração do texto, da forma de ver a paisagem por dentro, essa forma única de escrever com uma beleza avassaladora.

O eixo, porém, é o mesmo, ao redor do qual giramos todos: a solidão e a esperança perene de encontrar antídotos contra essa condenação.

Neste ano de 2007, o seis de março caiu numa terça-feira. Aracataca amanheceu ao som do estrépito de 80 tiros de canhão. Um por cada ano de vida do homem que queria apenas conquistar o afeto dos amigos, e que acabou escrevendo uma obra descomunal – a história de todos nós.

Eric Nepomuceno tem 58 anos e é autor de A Palavra Nunca, Coisas do Mundo, Quarta-feira, entre outros títulos. Traduziu para o português vários livros de Gabriel García Márquez, como Viver para Contar, Doze Contos Peregrinos, Notícia de um Seqüestro e Memória de Minhas Putas Tristes. Os dois se conhecem há 29 anos.

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