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Em cena de Fedra, de Racine. Augusto Boal dirigia a peça, que estreou em 1986 | Valdir Silva/Arquivo
Em cena de Fedra, de Racine. Augusto Boal dirigia a peça, que estreou em 1986| Foto: Valdir Silva/Arquivo

O teatro é, por força de sua essencialidade, uma arte efêmera. O seu tempo é gerado no ato da representação e, portanto, se esgotaria na duração de uma encenação. Mas ainda que tudo pareça se esgotar em duas ou mais horas, a pulsação teatral traz em si a permanência dos tempos.

Não é sem razão que o teatro se estende por cinco mil anos, absoluto, presente, sempre contemporâneo. A atriz Fernanda Monte­ne­gro, em mais de 60 anos de carreira, é a expressão dessa permanência. Há um sentido rigorosamente hedonístico na maneira como se põe no palco, que se confunde com a perenidade do execício de seu ofício. Há um prazer tão profundamente sedimentado pela ética do trabalho que se re­­flete na forma como conduziu a sua carreira.

Desde que se iniciou no palco, numa comédia despretensiosa, nos anos 1940, Fernanda Mon­­te­­ne­­gro é uma das mais persistentes e empenhadas trabalhadoras na cena, com fulgor brilhante que a distingue e a personaliza como alguém que fez da carreira compromisso vital.

Nu­­ma aula inaugural para alunos da Casa de Artes de Laranjeiras, no Rio, nos anos 1980, Fernanda apontava para o sentido que imprimiu à arte da representação. "Penso que nosso ofício não tem a condenação do trabalho. O suor do nosso rosto não é um castigo. Nosso ofício é a nossa festa. E o nosso sentido da vida. É o nosso prêmio."

Ao percorrer o repertório dramatúrgico, dos gregos aos alemães contemporâneos, de Nelson Rodrigues a Samuel Beckett, de poetas a escritores, depurou técnica e emoção que não se podem atribuir, unicamente, ao estudo, à dedicação e ao prazer. A atriz traz em si capacidade de interpretar que transcende a qualquer aprendizado formal.

Apesar de ter passado pelas mãos de diretores como Gianni Ratto, Alberto D’Aversa, pelo aprendizado do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e pela escola do Grande Teatro Tupi (em sete anos participou em mais de 500 peças na televisão, apresentadas ao vivo, todas as segundas-feiras, dia de folga no teatro), estabeleceu identidade de artesania somente palpável naqueles que têm talento próprio. Não por interposta razão divina, mas por cultivo de vocação ao longo da prática de trabalho. Criou autoridade no palco que se impõe na gesta teatral vivida como totalidade. É na apropriação de sua área expressiva, de onde emana a conquista da autoridade, de emoção a emoção, de técnica a técnica.

Nos anos 1990, em Dona Doida, seleção de poemas de Adélia Prado, a atriz fazia movimentos com as mãos, preparando invisível cataplasma.

Era apenas um gesto, mas que soberbo! É deste modo, em instantes, que Fernanda se transmuta. A mesma que enche os olhos de lágrimas, no momento seguinte, abre um sorriso sem perder o domínio dramático.

Neste recital, que foi à cena na maturidade da atriz, relembra aquela que em 1959, num papel ingênuo na burleta O Mambembe, de Arthur Azevedo, despontava como intérprete que com sua juventude já demonstrava bem mais do que faria supor a sua idade: a excelência e a integridade no exercício da representação.

Em 1982, quando estreou Lá­­gri­­mas Amargas de Petra Von Kant, do alemão Rainer Fassbinder, de­­monstrava estar de posse do domínio pleno de seu métier. No início do espetáculo, com os refletores do Teatro dos Quatro, no Rio, iluminando as costas muito brancas de uma mulher, com os cabelos em desalinho como os de alguém que desperta, começava para o espectador a experiência privilegiada de assistir a uma atriz mostrar, de forma absoluta, a extensão de sua técnica. Esta sua interpretação é emblemática da sedimentação da intérprete que conquistou a arena teatral como espaço próprio. O seu porte em cena é de um animal, dono da liberdade de se movimentar numa área que é inteiramente sua, por conquista e mérito.

A relação estreita entre o espaço e o tempo, se conjugam em Fer­­nanda como intimidade. Cada pau­­sa, silêncio, movimento, corresponde a palavra, ação, gesto que acentuam esta intimidade. A sua respiração é um elemento dramático tão forte, que será impossível deixar-nos indiferentes. É com a mistura de rigor e prazer que Fernanda Montenegro exerce a sua atividade e que o teatro se comprova, através de sua carreira, uma arte permanente, criação definitiva na sua efêmera temporalidade.

*Macksen Luiz é crítico teatral.

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