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Já virou clichê. A arte como metáfora para libertação desgastou-se ao ser explorada ad infinitum pelo cinema e pela literatura. No entanto, ganha força no contexto de dois filmes iranianos recém-lançados em DVD: Às Cinco da Tarde, de Samira Makhmalbaf, e Dois Anjos, produção franco-iraniana dirigida por Mamad Haghighat. Realizados em 2003, os dois longas-metragens tratam de temas já habituais ao cinema iraniano – a opressão de mulheres e jovens, causada pela intolerância religiosa –, mas de uma maneira particular e, no caso de Makhmalbaf, poético.

Às Cinco da Tarde é o terceiro filme da primogênita de uma família de cineastas encabeçada pelo pai, Mohsen Makhmalbaf (O Caminho para Kandahar). Aos 18 anos, Samira estreou no cinema com A Maçã, feito com sobras de negativo cedidas por Mohsen, em que denuncia o cárcere doméstico de duas meninas.

Com o mesmo engajamento político, ela visitou o Afeganistão logo após o atentado de 11 de Setembro para entender melhor os acontecimentos de um país tão semelhante ao seu, na língua e nas tradições, mas devastado pelos ataques do Taleban e, posteriormente, pelos bombardeios norte-americanos. O resultado é um filme essencialmente político, mas lírico e delicado ao tratar da realidade sob o viés de uma personagem feminina – a jovem Noqreh, muito bem interpretada pela atriz amadora Agheleh Rezaie.

Não é permitido sonhar neste filme, ao contrário de em Dois Anjos, que tem final ingenuamente feliz. Mesmo sabendo disso, Noqreh sonha em se eleger a primeira presidente mulher do Afeganistão. O desejo ganha força nas discussões acaloradas sobre política com as colegas da escola, onde vai escondida do pai, um fanático religioso às voltas com a miséria e o desaparecimento do filho. Mais tarde, a família descobre que ele morreu em um bombardeio, deixando para trás mulher e criança recém-nascida. Diante de uma vida tão inóspita (a sensação se concretiza pela visão dos cenários áridos e poeirentos), a arte, se não é redentora, ao menos serve de brecha para respirar e transcender internamente, já que as condições do país não permitem nenhuma mudança exterior.

Mas, a arte também provoca cisão, pois é incompatível com o fanatismo religioso do chefe de família. A família de Noqreh torna-se ainda mais miserável quando o pai decide abandonar o próprio lar para não ouvir a música "profana" que o vizinho desabrigado insiste em sintonizar no rádio. Por culpa dele, Noqrah e a cunhada acabam vagando pelo deserto, famintas e sem esperanças.

Sem entrar em detalhes, para não desestimular o leitor a assistir ao filme, não há arte que liberte a protagonista de seu destino, semelhante ao de milhares de outras mulheres muçulmanas obrigadas a obedecer os homens de sua família e seguir os ditames de uma sociedade moldada por rígidos preceitos religiosos.

A música também é pecado em Dois Anjos. Em linhas gerais, o filme conta a história de Ali (interpretado pelo inexpressivo Siavash Lashkari), um menino de 15 anos que, como Noqreh, não pode freqüentar a escola por proibição do pai. Ao fugir para o campo, ele encontra um pastor de ovelhas – uma metáfora religiosa manjada – que o ensina a tocar ney, uma espécie de flauta.

Ao perceber seu encantamento pela música, a mãe de Ali o matricula em uma escola de música em Teerã. Lá, ele conhece Azar (Golshifte Farahani), uma menina educada de forma bem mais livre.

O contraste entre os mundos dos dois é gritante e choca-se com a estreiteza do universo de Ali, proibido de estudar e, agora, de tocar música. A interpretação das mulheres nesse filme, com destaque para a bela Farahani, é muito superior à dos homens. O pai de Ali só sabe correr atrás dele para surrá-lo, ou rezar na mesquita. Já o menino, depois das filmagens, poderia participar de uma maratona, pois só o que faz é debandar sem rumo, sempre que se depara com uma situação inesperada – ele corre das surras do pai, foge correndo depois de roubar a flauta do pastor, corre de alegria ou de tristeza. Ele quase não fala, mas urra muito.

Em termos de roteiro e direção, não pode ser comparado ao belo filme de Makhmalbaf, mas é inovador ao tratar do universo de um adolescente de classe média, faixa pouco explorada por aquelas bandas.

Se no filme de Makhmalbaf, a transformação pela arte é profunda, mas não consegue transpor à muralha dos diversos tipos de intolerância, no filme franco-iraniano, a música simboliza, de modo simplista, a libertação de Ali do jugo do pai. A diferença está explícita na cena final dos filmes: no primeiro, a moça sussurra um poema macabro relacionado às cinco da tarde – que dá nome à fita – enquanto vaga sem rumo pelo deserto com a família despedaçada; no segundo, o menino "volta à vida", após levar uma surra do pai que quase o mata, e, de forma redentora, retorna à escola de música pendurado no alto de um ônibus, em pose "à la Titanic" (urrando, com os braços abertos, ao vento).

Às Cinco da Tarde – GGGGDois Anjos – GG

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