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Daniel Kehlmann, vencedor dos prêmios Thomas Mann e da Fundação Konrad Adenauer, é um autor conhecido na Alemanha | Sven Paustian/Divulgação
Daniel Kehlmann, vencedor dos prêmios Thomas Mann e da Fundação Konrad Adenauer, é um autor conhecido na Alemanha| Foto: Sven Paustian/Divulgação

Mais do que apenas narrar histórias ou desenvolver uma linguagem elaborada, o escritor alemão Daniel Kehlmann, de 35 anos, está interessado em discutir os limites entre os gêneros literários. Essa intenção está evidente em Fama, publicado em 37 países e que acaba de chegar às livrarias brasileiras. Já no subtítulo, Um Romance em Nove Histórias, a obra revela os propósitos do autor. Fama não é, necessariamente, um romance. Na ficha catalográfica, o livro está classificado como ficção alemã.

Kehlmann, que já venceu alguns dos mais importantes prêmios literários da Alemanha, reuniu nove textos que, em uma primeira leitura, não parecem ter pontos de contato. São enredos que podem se encerrar em si mesmos e, a partir dessa constatação, seria possível dizer que Fama é uma coletânea de contos. Mas, depois de uma segunda ou terceira leituras, evidenciam-se sutilezas presentes em todos os textos. Há pelo menos um assunto em comum: a perda, irreversível, da identidade.

"A Saída" é o conto no qual o escritor desenvolve com mais profundidade o assunto. O protagonista é um ator, Ralf Tanner, que, ao completar 39 anos, começou a sentir o chão ruir. Há um trecho do texto ficcional que traduz, com precisão, o momento em que a trajetória de Tanner se modifica: "De um dia para o outro, seu telefone parou de tocar. Amigos de longa data desapareceram da sua vida, projetos profissionais foram por água abaixo sem qualquer razão, uma mulher que ele amava, na medida do possível, acusou-o de ter debochado cruelmente dela ao telefone."

Um dia, Tanner encontrou no YouTube o vídeo de um sujeito que o imitava. O protagonista foi até o clube onde aconteciam os shows do seu imitador, e ficou surpreso. O sujeito que se fazia passar por Tanner repetia performances que o ator realizou no passado, mas que, no tempo presente, o próprio Tanner não tinha mais capacidade de realizar.

Tanner se deu conta de que, de tanto representar outros, deixou de ser ele mesmo. "Às vezes, dava a sensação de ser outra pessoa", refletiu o personagem, que foi impedido, pelo porteiro, de entrar em sua própria residência.

A exemplo do que acontece com Tanner em "A Saída", em outros textos do livro os personagens também se transformam após perderem algo precioso durante as suas trajetórias.

Em "Resposta à Abadessa", o personagem central se chama Miguel Auristos Blancos, "o es­­critor venerado pela metade do planeta e indulgentemente desprezado pela outra metade". Ele é convocado a dar um depoimento, a respeito de sua verdade pessoal e, ao se questionar intimimamente, Blancos chega à constatação de que não passa de um blefe, principalmente por ter sido alguém que "venceu" escrevendo sobre serenidade, beleza interior e busca pelo sentido da vida – algo que ele não acredita. Há muitas evidências de que esse personagem tenha sido inspirado em Paulo Coelho, mas o autor não faz qualquer menção direta a essa semelhança.

Acima de tudo, ao mostrar personagens que perdem ou têm as suas personalidades desconstruídas, o autor também realiza um romance que não é uma longa narrativa – com começo, meio e fim – convencional. Kehlmann, ao reunir breves textos, mostra que o romance literário pode ser diferente de tudo aquilo que costuma ser feito.

No segundo conto, "Em Perigo", o narrador diz: "Um romance sem personagem principal! Entende? A composição, as conexões, o arco narrativo, mas sem protagonista, sem um herói que apareça em todas as situações". Essa é a chave para começar a entender o livro: Fama é um romance porque o autor diz que é, sem querer impor, mas sugerindo, por meio de ironia, uma vontade de dialogar com o nosso tempo, em que todas as certezas são provisórias, inclusive as formas de fazer um romance. GGG

Serviço: Fama, um Romance em Nove Histórias, de Daniel Kehlmann. Tradução de Sonali Bertuol. Companhia das Letras, 160 págs, R$ 39,50. Ficção.

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