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Uma cobra que dá bote em sua semelhante porque não consegue evitar sua condição de réptil. Um cachorro que parece ter saído dos faroestes de Sérgio Leone. Um macaco cantor, cuja belíssima voz lembra a de Plácido Domingo e é capaz de levar toda a floresta às lágrimas. Uma borboleta que rebate a inveja do colibri, reclamando do tempo em que foi "uma vagarosa, peluda e repugnante lagarta". A maioria desses personagens tem nome e sobrenome – o cão pistoleiro é Dog, o Facínora – e poderia ter saído da imaginação de Chuck Jones, pai do Pernalonga, do Patolino e de vários outros personagens.

O jaboti Arnaldo César, o gato Erivelto, o galo Lindolf, a formiga Ingrid e a raposa Galdina e mais duas dezenas de figuras improváveis fazem parte do fabulário criado por Wilson Bueno em Cachorros do Céu (Planeta, 96 págs., R$ 27).

Fábulas são narrativas curtas, tanto faz em prosa ou verso, cujos personagens são animais que agem como seres humanos e ilustram um preceito moral – assim são as fábulas do francês Jean de la Fontaine (1621 – 1695). Bueno, assim como Chuck Jones, também usa animais humanizados, porém, fala de preceitos imorais. "Longe de os textos se revelarem morais, são escárnios desmoralizantes em si mesmos e desmoralizantes das intenções construtivas das fábulas convencionais", explica Ivo Barroso, tradutor dos poetas Arthur Rimbaud e T. S. Eliot, em texto na orelha do livro.

Barroso se refere a histórias como a da "Rã Memorável". Autora de poemas para revistas, jornais e suplementos literários, sempre saudados como pequenas obras-primas, a Rã poeta vivia agruras financeiras e "não chegou, ao longo da vida, a ter sequer um apartamento financiado pelo BNH". Em vida, ela resistia à idéia de publicar livros, morreu pobre e seus herdeiros organizaram suas obras completas, rapidamente transformadas em best sellers.

Bueno, que estreou tardiamente na literatura – lançaria seu primeiro livro, Bolero’s Bar, aos 38 anos, incentivado e prefaciado por Paulo Leminski – quis, por meio da fábula da rã, mostrar o que pode acontecer a quem deixa a vida para depois. Sua história termina com tetranetos vivendo rotinas nababescas graças aos esforços da rã que, em vida, desfrutou de coisa nenhuma.

Este é o segundo livro do escritor paranaense lançado pela editora Planeta. O anterior, Amar-Te a Ti nem Sei se com Carícias, foi uma homenagem a Machado de Assis, brincava com a maneira de falar do século 19 e, por tabela, lançava crítica ao empolamento preponderante na suposta alta cultura brasileira. Para isso, a prosa de Amar-Te... reproduzia – e reescrevia – a dos anos 1800.

Reescritura é um tema recorrente na obra de Bueno, para quem seu livro não reúne fábulas, mas "refabulações sem moral e, muitas vezes, desmoralizantes". Nesse esforço, ele homenageia os fabulistas La Fontaine, Charles Perrault (O Chapeuzinho Vermelho) e os irmãos Grimm (Branca de Neve e os Sete Anões). Longe da moralidade desses autores, que defendiam o trabalho da formiga e condenavam o canto da cigarra – como fez La Fontaine –, o paranaense não hesita em escrever alegorias sobre assuntos politicamente incorretos, abordando do machismo à inveja e ao "levar vantagem em tudo".

Bueno nasceu há 56 anos em um rancho a 40 quilômetros de Jaguapitã, no sertão paranaense – quando o Paraná ainda tinha sertão. Até os sete anos de idade, levou uma vida indígena, tomava banho no rio e brincava com seus animais de estimação – macaco, cotia, gato e cachorro. Vem dessa época o seu interesse pela fauna.

De início, sua intenção era de escrever histórias em que pudesse dar humanidade aos animais. À medida em que desenvolvia seu "refabulário", notou o quanto os seres humanos podem ser irracionais – tanto quanto ou até mais que um cágado ou uma coruja. "O homem faz uso de sua inteligência no sentido da autodestruição ou da destruição do outro. Somos seres incuráveis", afirma o escritor. Nessa cenário, o vilão não poderia ser outro senão o macaco, o mais próximo de ser humano que um animal pode chegar.

Bibliografia

Bolero’s Bar – (Criar Edições, 1986)

Manual de Zoofilia –(Noa Noa, 1991)

Ojos de Agua – (El Territorio, 1992) – publicado na Argentina

Mar Paraguayo – (Iluminuras, 1992) – publicado também em Santiago do Chile em 2002

Cristal – (Siciliano, 1995)

Pequeno Tratado de Brinquedos – (Iluminuras, 1996)

Medusario/Mostra de Poesia Latinoamericana – (Fondo de Cultura Económica, 1996) – Antologia publicada no México

Jardim Zoológico – (Iluminuras, 1999)

Os Chuvosos – (Tigre do Espelho, 1999)

Meu Tio Roseno, a Cavalo – (Editora 34, 2000) – Finalista do Prêmio Jabuti 2001

Once Poetas Brasileños – (Cetrería, 2004) – publicado em Cuba

Amar-te a ti nem Sei se com Carícias – (Planeta, 2004) – Premiado com a Bolsa Vitae de Literatura 2000

Cachorros do Céu – (Planeta, 2005)

Bolero’s Bar/Diário Vagau – (2.ª edição pela Travessa dos Editores, sem data de lançamento)

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