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Achebe: escritor deixou uma vasta e contundente obra | Divulgação
Achebe: escritor deixou uma vasta e contundente obra| Foto: Divulgação

Romance

A Paz Dura Pouco

Chinua Achebe. Tradução de Rubens Figueiredo. Companhia das Letras, 200 págs., R$ 38.

O escritor nigeriano Chinua Achebe, que morreu no dia 21, aos 82 anos, destaca-se entre seus conterrâneos por ter aberto para a comunidade mundial as veias de um país ambivalente e contraditório em sua história recente. Seu livro A Paz Dura Pouco, segundo volume de uma trilogia formada por O Mundo Se Despedaça e A Flecha de Deus, todos publicados pela Companhia das Letras, é simbólico nesse sentido.

Publicado originalmente em 1960, poucos anos antes da guerra fratricida que dividiu o país com a criação da República de Biafra, A Paz Dura Pouco representa a ascensão cultural do povo ibo, etnia da qual Achebe faz parte, que incentivou a mudança da mentalidade do país oferecendo bolsas de estudos na Inglaterra. O protagonista é Obi Okonkwo, neto do guerreiro Okonkwo de O Mundo Se Despedaça, ganhador de uma dessas bolsas e, pouco tempo depois, acusado de suborno por um tribunal impiedoso.

Mas, se o avô Okonkwo, que presenciou a dominação britânica na vila de Umofia, cai em desgraça por matar um jovem com as próprias mãos, mesmo que este precisasse ser morto, segundo vontade dos deuses, a ruína do neto Obi Okonkwo está em seu descompasso com a realidade de uma Nigéria tomada pela corrupção e por um choque de culturas na cidade de Lagos. Seu pai, mesmo convertido ao cristianismo, não concebe seu relacionamento com Clara, uma garota osu – uma pária entre a religiosidade nigeriana. Seus amigos, embora empenhados em combater a falta de ética no país, não conseguem enxergar malefícios no recebimento de suborno para algo que apenas favorece ambas as partes. Por fim, resolve usar sua bolsa de estudos não para estudar Direito, como queriam seus benfeitores, mas Inglês, algo considerado menor e de pouca serventia. A partir destes elementos, uma série de erros e desencontros culmina no julgamento do jovem de futuro promissor que é apresentado no início do romance.

Permanece, ao longo de toda a leitura de A Paz Dura Pouco, uma sensação kafkiana de inevitabilidade, como se o autor, por meio da mera narração de fatos e diálogos, dissesse diretamente ao leitor que a construção da ética ocidental em um país com suas próprias leis e valores não é possível simplesmente por meio da educação das novas gerações. Em dado momento do romance, um dos personagens inclusive sugere que a corrupção na Nigéria acabaria assim que todos os funcionários da antiga geração morressem. A tese é desmentida com a corrupção do próprio Obi Okonkwo, cujas razões para tal são o verdadeiro mistério do livro. Desse modo, portanto, são, antes de tudo, as circunstâncias que fazem o contraventor, algo que pode ser sobreposto às ideias de Rousseau e Locke sobre o homem à luz de uma sociedade deformadora do caráter construído.

Achebe pintou o caráter exótico da África para os africanos enquanto os escritores europeus se ocupavam de retratar o estranhamento do homem branco no continente negro. Ele deixa não só uma obra vasta e contundente sobre o material complexo do qual é feita a Nigéria, mas também uma linha de escritores cujas obras dialogam com seu pensamento, como Chimamanda Ngozi Adichie e Teju Cole, para citar dois autores também publicados no Brasil. Para nós brasileiros, aliás, o valor de sua literatura está na aproximação entre os dois países por sua clara semelhança nas gêneses de pensamento e cultura. O Brasil, em suas ambivalências e conflitos éticos, também tem um pouco de Nigéria.

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